Por que você faz o que faz

Não é fácil para ele responder à pergunta aparentemente tão simples. Vem arrastando a interrogação desde os anos escolares sem nunca atinar para uma resposta, ainda que fosse para si mesmo convincente. Faço por que faço. Isso não é resposta, moleque. É a que tenho. Na verdade não consegue formular sequer um questionamento próprio. Não se sente arreliado pela falta de respostas. Pensa que neste ponto a mãe exagera. Por que é que tudo que se faz tem de ter um por quê?

Olha para o aglomerado de barracos amontoados no morro onde a vida se desenrola como tem de ser, sem indagações. Nessa hora melancólica do pôr-do-sol as ruelas mal traçadas da comunidade carente conduzem os homens para os paupérrimos interiores de seus mocambos. Vêm esfalfados pelo peso da jornada diária no batente da obra. A maioria da força de trabalho do morro é absorvida pela construção civil. Invariavelmente passam na venda para o trago com que tentam redimir o espírito combalido pelas angustiosas incertezas. Alguns dilatam o tempo por ali, deliberadamente, a conversar banalidades. Nenhum deles tem resposta alguma para suas próprias questões, mas todos, depois que algum estímulo alcoólico atinge suas correntes sanguíneas, tornam-se expertos em problemas de alta complexidade. Protelam, porém a chegada em casa onde lhes esperam insignificantes dificuldades de ordem doméstica que desafiam constantemente sua expertise.

Imagina que todos aqueles homens se perguntam por que fazem o que fazem quando procedem de alguma forma que não seja a estabelecida pelo convencionalismo massacrante, por isso levam essa vidinha insípida. Uma resposta que traz pronta é que não quer isso para si. Vinha de uma ascendência escrava como a maioria da gente do morro. Seus ancestrais foram arrancados à força de sua nação de origem, quando amavam tanto a liberdade que para cada homem capturado nove morriam em defesa da mesma. Não soube disso pelos livros didáticos porque certos detalhes são irrelevantes para os interesses políticos de qualquer nação. Cético por natureza, jamais aceitou sem uma interrogação a verdade absoluta. Fora o mais endiabrado membro de todas as classes escolares por que passou, contudo o mais brilhante, o mais questionador, peculiaridades que levavam alguns professores a esconjurá-lo, outros a amá-lo, como o professor de História com quem se batia quase sempre e acabou o tratando com imprevista deferência, esclarecendo-lhe muitas coisas em particular e emprestando-lhe bons livros.

O que mais o entristece é perceber o que os séculos de servidão fizeram da sua gente. Cadê o sonho de liberdade? O porte altivo? O aspecto nobre dos grandes guerreiros do passado prontos a morrer pela liberdade? Parece que a gente do morro está rendida à miséria. A sujeição à não-liberdade os leva a buscar os mais diferentes tipos de aprisionamento a que o senso comum denomina dependências. Ele, contudo, percebe uma geração insurgente, dia desses a coisa muda.

Porque você faz o que faz? Muitas vezes fora apanhado com a boca na botija quando era inexperiente. A mãe, lavadeira pobre, chamada à delegacia, levada ao limite da humilhação, ficava fula, xingava, dava-lhe uns cascudos doídos. Depois, quando a ternura da noite caía sobre o pobre barraco, ela afagava-lhe carinhosamente a carapinha. Ô, meu filho, porque você faz o que faz? Pensando bem, agora tem uma resposta: é pra tirar a mãe daquela vida. Já juntou algum dinheiro e tem ainda um ano para juntar mais. Então terá que convertê-lo num negócio legal, porque terá completado dezoito anos e o braço da justiça já o poderá alcançar.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 23/02/2018
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