NA MIRA

Sei que virarei foto. Não tenho nenhuma dúvida disso. No máximo alguma dedicatória, de um filho ou sobrinho, bordando sintaticamente a imagem de alguém que não existe mais. A escrita ao vazio confere-se de uma natureza bastante decorosa: “em memória de”, “saudades eternas”, epítetos sofisticados como reza as homenagens. Irrevogavelmente, esse peito que versou quase todas as formas de vida se irá para lá. Para um ¾ das mais sinceras lisonjas, responsável pela produção das mais requintadas ontologias do pós-vida.

Os meus símbolos, no entanto seguem diferentes. Deságuam em mãos minhas orfandades internas. Neles reside o poema das permanências ocultas. Paternidade esvaída mediante o ícone que, preso em minhas mãos, constela os meus desacontecimentos. Na mira da fotografia do meu filho permito-me a um rio de excursões e incursões no meu espírito. Nascentes e margens de caminhos que ainda me permeia de procuras.

Carrego comigo a primeira imagem de sua partida. O tempo detido, porém evidenciando sua natureza e missão: o caminhar. A foto foi profética. Transformou-se em verbo. Na eminência dos seus primeiros passos, Luizinho se encontra na minha carteira. Sob limites tão pequenos, sua foto molha-me os olhos, e em coragem, me memora o calvário de um querido filho, que também parecia partir sem motivo algum.

As visitas ao parque todos os sábados nos preparavam ao exercício do cuidado. De uma ponta a outra, aguardávamos que seus pequenos membros inferiores nos decorassem os olhos e o coração com a marcha do pequeno príncipe da família. Ansiosos, todos ficávamos à espreita de sua chegada. Na largada, os olhos nervosos da mãe, que parece subjugar à irresponsabilidade meus intentos, do outro, minhas solicitudes; que acredita que o pequeno guri precisa de pressa para subjugar o mundo. A senda percorrida é muito curta: três ou quatro passos antes do tropeço. Nunca o insucesso de uma missão nos encheu de tanto riso. Na mira da sua foto, Luizinho deixou-me carquilhado como papel de fotografia velha nos recantos do mundo.

A quadratura da imagem permeia a diástase entre tempo e eternidade. A foto tem medição bem demarcada: 10/15. Dez centímetros horizontalizando minha caminhada, e quinze minha devoção. Medições que reespacializam meu cristianismo. A foto de Luizinho às vezes prende meu credo. Tranca a fé que deveria apontar para eternidade. Este pequeno quadrado impresso racha-me mediante a contradição da vida que até hoje disputa com minha crença cristã: pais sepultam filhos.

As bordas da foto se colorem frente aos açoites do tempo. Um amarelado tão frio quanta a alma do seu José Jorge, coveiro que me prova que a morte é natural. A descoloridade daquele amarelo percorre não apenas os caminhos que circundam a imagem no papel, mas todos os contornos da minha paternidade. Incertezas amareladas, alimentadas pelas palavras desperdiçadas que às vezes são ditas pelos homens de Deus:
- "Caros irmãos, no mundo onde há liberdade é inevitável a ocorrência do mal".

Meu filho não precisava morrer para eu entender isso.

A foto possui dois lados, mas só um tem imagem. É o arcano que me faz rejeitar as tão abstratas teodicéias. Há um lado que não vejo, logo não tenho a mínima ideia do que possa ser. Vivemos sob esta metáfora. O que vejo é: meu filho sendo planejado, gerado na estrita observância obstétrica, parturido ao som de cânticos litúrgicos, tem registro de nascimento, consagrado na igreja. Mas o que não vejo, descrevo logo atrás da sua foto: não há nada lá. Por isso, ao sair da mira de sua foto, passo a mirar em outra imagem, que também não vejo, mas sei que também me mira como seu filho.

A foto do meu filho reorienta a compreensão sobre aqueles dias: o acidente de carro, o cheiro de vida nos lençóis do berço, o cartão de vacinas... Tudo isto faz parte de uma foto empreitada por um artista que não me revelou os detalhes do que queria. Fotografa-me assim como tirei a foto do meu filho. Delimita-me, ora colorindo-me, ora descolorindo-me, e também imprime em meu verso coisas que não tenho capacidade de ver. O lado abrigado por imagens que configura o outro lado das histórias que apesar de fazer parte de mim, não às vejo. No entanto, sei que também sou seu filho e não saio de sua mira.