Fernão suou e gelou. Sua alma pôs-se a fazer caminhos diversos nos versos quebrados do amor dividido. Precisava desabafar, contar para o papel as dores do coração. Doía ser fingidor, embora fosse necessário fingir que não doía, a dor que sentia, doía demais em seu coração. Restava esperar a sorte, então, levantou o dedo de Manuel Bandeira — que lembra os gestos desesperados da estatuária Laocoonte sentindo na pele a sombra da morte — Julgado e condenado; o homem e o cacto são lançados ao fogo que queima os espinhos da carne. Se nascido para sofrer por certo tudo que lhe aconteceu, estava escrito por antecipação, no livro da vida. ‘Erraste, Fernão, uns caminham para a vida, outros para a morte. Cada um tem seu quinhão de glória ou de infortúnio na escolha que faz. Não terás ascensão na vida, se optares pela queda. Acione, pois a cordinha do coração para pousar suavemente sobre a relva fresca, ou feche as asas e se deixe cair em mergulho profundo no pedregulho da desilusão. A vida é um poema que espera ser escrito. Cada ser pensante constrói seu mundo, e é neste mundo que ele vive. Mas é preciso dar o primeiro passo e no compasso de cada dia, escolher a roupa fria para num dia quente, ou uma roupa quente para um dia frio; erguer a mão, jogar o laço, andar na contramão. Escrever e reescrever a própria história é uma questão de escolha... Tudo está em tuas mãos. Toma, pois, caneta e transfere para o papel, as dores que te acorrentam a alma. Faze isto, e ficarás com coração limpo e a alma lavada. Cuida do corpo. Cuida principalmente da alma, não permitindo que tribulações venham obstruir o canal por onde passa a virtude da esperança. Jogue fora toda sujeira que não lhe traz boa lembrança. Faça uma faxina, deixe a casa limpa. Limpe a represa e a chaminé. Comece escrevendo. Escreva para si mesmo ou para outrem. Conte um conto, Cante um canto, ainda que seja de dor. Lance fora o cobertor de problemas que envolvem teu coração. Não temas. O amor e o ciúme caminham juntos, dormem e acordam juntos; um é a régua, o outro, o compasso, ambos, porém, necessários na caminhada a dois. Tudo passa no vértice da existência: a angústia, a dor, e o sofrimento também passam e concorrem para que deixemos em rastros distintos numa mesma pegada. A vida passa, repousa como a areia deixada pelo vento e descansa em paz. Mas... é preciso remover as manchas do espelho que impedem o brilho de Deus refletir no rosto humano. Escreveu. Rabiscou. Encheu a lixeira com papel amassado. O fracasso nas primeiras tentativas, não o fez desistir. A angústia, a dor, e o sofrimento passam e serão levados como chaminés de fada. Também a vida passa...
Percorreu a casa, conferiu cada cômodo. Seu coração batia acelerado. A qualquer momento, poderia deparar-se com a mulher que sempre lhe entregava um comprimido de fumareto: ‘Tome, e vá de metrô. Deixe o carro na garagem. Não é seguro dirigir: faz dois dias que não tomas teu remédio. ’
Repassou o álbum de casamento.
A câmera capturou os melhores ângulos de Vannini. Mas sorriso, ninguém esboçava. Que família é esta? Só tristeza. Teriam eles se casado em dia de finados? Lançou o olhar sobre os dias de ontem: ‘O pai o defendia, desde muito cedo: ‘Absurdo reprovar o menino por não saber quem foi Lord Cohrne!’ Não podia negar que o marquês do Maranhão fora importante na história da marinha brasileira, mas daí a reprovar um aluno por desconhecer este fato? Almirante escocês! ... Isso é cultura inútil! Qual interesse essa informação pode despertar numa pessoinha daquela? Diferente das meninas que guardam suas bonecas numa caixa, Fernaõ ainda brincava horas a fio com seu trovão azul, simulando manobras arriscadíssimas, a imitar o barulho do motor: thá... thá...thá... thá... thá...thú... thú... thú... thá... thá...thá... thá.. thú... thú... thú... thú. Boa alma tinha o menino: gigante em estatura, e coração criança. O pai, apesar de apaixonado pela navegação marítima, não tinha queixas em relação ao nome que lhe fora dado na pia batismal: Yuri, em homenagem ao piloto soviético, que se destacara na escola de Saratov. O pai de Fernão, queria registrar o filho com o Gagarin, quem sabe, o menino poderia vir a ser tão famoso quanto aquele primeiro astronauta a orbitar a Terra.
A mãe protestou:
—Não quero mais um ateu dentro de casa!
— Não vamos brigar. Fernão é o nome dele.
O menino cresceu em estatura, mas a idade mental, não passava dos seis anos. Abria a torneira e ficava vendo o riacho escorrer na ardósia. Depois, punha fim ao dilúvio, desligando a água, para não afogar uma formiga que passava distraída. Todas as coisas lhe devem fidelidade e obediência, do contrário, seriam punidas. Quantos carrinhos queimados em fogueira?... Quantos socos e pontapés levaram as portas e paredes porque não saiam de sua frente? Olhar distante, desatento aos estímulos externos, parecia viver um mundo diferente daquele dos falantes. Criou seu próprio vocabulário para dar nome às coisas, de modo que sua comunicação só era possível com a família, e com as pessoas de seu relacionamento. Bité era chupeta, e menino, miné. Em seu país, a rede pública de ensino, não estava capacitada para lidar com crianças portadoras de necessidades especiais, se os pais não o houvessem remanejado para um colégio particular, Fernão jamais teria se tornaria aviador. Contudo, até realizar seus sonhos de pertencer à Esquadrilha da Fumaça, ainda teria que navegar muitas milhas.
Certo dia, o pai quis brincar com uma réplica do Titanic. O menino não gostou. O medo de naufrágio o atormentava. Seria trauma por causa do Almirante Cohrne? E puxava conversas estranhas:
— Peixe gosta de picolé?
— Que conversa! Onde peixe vai encontrar picolé pra chupar?
É preciso assimilar a lógica de criança, se quisesse entender o que ela diz. Suas ideias não eram desalinhadas, elas ocorriam numa ótica diferente, superior à compreensão daqueles que se dizem normal. Aprendia com facilidade o que lhe interessava, mas tinha dificuldade de concentração. Não era autista, isso não era. Mas, era cedo demais para atribuir ao filho um diagnóstico de esquizofrenia. Teria inteligência acima da média ou muito a baixo? Qualquer insignificante obstáculo lhe era pedra de tropeço. Caia com frequência e se acidentava numa garrafa descartável.
O menino insistiu na pergunta.
— Se um navio afundar em mar gelado a gente vira picolé?
O pai desconversou, contando-lhe a história do profeta Jonas apanhado por um peixe gigante.
— Peixe grande comeu o profeta?
— Não comeu! Dizem que a boca do tubarão-baleia é como uma sala de estar, e quando a presa é grande, fica ali por algumas horas ou dias, antes de ser empurrada para as entranhas do animal. O profeta Jonas, julgando estar numa caverna, tateou, até encontrar uma corda, talvez as cordas vocais da baleia ou as guelras. Isso provocou cócegas insuportáveis no animal, que, dando um espirro gigantesco, atirou o profeta na praia.
Até certo ponto, Fernão era perfeccionista, criterioso naquilo que gostava de fazer. Conversava com seus brinquedos e achava que eles eram capazes de obedecer às suas ordens de comando. Claro que quase toda criança tem ou teve sua fantasia de viajar num mundo encantado em que ela seja poderosa. Ser um Policial, ser um Bombeiro que resolve tudo, chegando na hora certa com seu Trovão Azul... thu... thu... thu.
Apaixonado por navegação, Yuri mantinha em casa um tesouro em réplicas da navegação e da aeronáutica. Aprendera a brincar, desafiar os perigos, nas grandes fantasias da imaginação, com o intento de ocupar a emente do filho. Fizera até uma miniatura do 14BIS, com motor movido a metanol e divertia-se controlando da terra aquela engenhoca como se fosse Santos Dumont, sobrevoando Eiffel. Temendo reprimenda da mulher, Yuri guardou a sete chaves a certidão de nascimento do filho. O varão tinha nome de gente famosa: Fernão de Noronha Capelo.
— Não sou ouvida nem para escolher o nome de meu filho. Essa criança vai ter trauma com o nome — disse a mãe ao tomar conhecimento do registro de Fernão. Ela entrou no quarto e trancou a porta com duas voltas na chave. Ele saiu de casa. Era uma tarde cinzenta do mês de agosto, quando o pai de Fernão abandonou a família.
Repassou o álbum de casamento.
A câmera capturou os melhores ângulos de Vannini. Mas sorriso, ninguém esboçava. Que família é esta? Só tristeza. Teriam eles se casado em dia de finados? Lançou o olhar sobre os dias de ontem: ‘O pai o defendia, desde muito cedo: ‘Absurdo reprovar o menino por não saber quem foi Lord Cohrne!’ Não podia negar que o marquês do Maranhão fora importante na história da marinha brasileira, mas daí a reprovar um aluno por desconhecer este fato? Almirante escocês! ... Isso é cultura inútil! Qual interesse essa informação pode despertar numa pessoinha daquela? Diferente das meninas que guardam suas bonecas numa caixa, Fernaõ ainda brincava horas a fio com seu trovão azul, simulando manobras arriscadíssimas, a imitar o barulho do motor: thá... thá...thá... thá... thá...thú... thú... thú... thá... thá...thá... thá.. thú... thú... thú... thú. Boa alma tinha o menino: gigante em estatura, e coração criança. O pai, apesar de apaixonado pela navegação marítima, não tinha queixas em relação ao nome que lhe fora dado na pia batismal: Yuri, em homenagem ao piloto soviético, que se destacara na escola de Saratov. O pai de Fernão, queria registrar o filho com o Gagarin, quem sabe, o menino poderia vir a ser tão famoso quanto aquele primeiro astronauta a orbitar a Terra.
A mãe protestou:
—Não quero mais um ateu dentro de casa!
— Não vamos brigar. Fernão é o nome dele.
O menino cresceu em estatura, mas a idade mental, não passava dos seis anos. Abria a torneira e ficava vendo o riacho escorrer na ardósia. Depois, punha fim ao dilúvio, desligando a água, para não afogar uma formiga que passava distraída. Todas as coisas lhe devem fidelidade e obediência, do contrário, seriam punidas. Quantos carrinhos queimados em fogueira?... Quantos socos e pontapés levaram as portas e paredes porque não saiam de sua frente? Olhar distante, desatento aos estímulos externos, parecia viver um mundo diferente daquele dos falantes. Criou seu próprio vocabulário para dar nome às coisas, de modo que sua comunicação só era possível com a família, e com as pessoas de seu relacionamento. Bité era chupeta, e menino, miné. Em seu país, a rede pública de ensino, não estava capacitada para lidar com crianças portadoras de necessidades especiais, se os pais não o houvessem remanejado para um colégio particular, Fernão jamais teria se tornaria aviador. Contudo, até realizar seus sonhos de pertencer à Esquadrilha da Fumaça, ainda teria que navegar muitas milhas.
Certo dia, o pai quis brincar com uma réplica do Titanic. O menino não gostou. O medo de naufrágio o atormentava. Seria trauma por causa do Almirante Cohrne? E puxava conversas estranhas:
— Peixe gosta de picolé?
— Que conversa! Onde peixe vai encontrar picolé pra chupar?
É preciso assimilar a lógica de criança, se quisesse entender o que ela diz. Suas ideias não eram desalinhadas, elas ocorriam numa ótica diferente, superior à compreensão daqueles que se dizem normal. Aprendia com facilidade o que lhe interessava, mas tinha dificuldade de concentração. Não era autista, isso não era. Mas, era cedo demais para atribuir ao filho um diagnóstico de esquizofrenia. Teria inteligência acima da média ou muito a baixo? Qualquer insignificante obstáculo lhe era pedra de tropeço. Caia com frequência e se acidentava numa garrafa descartável.
O menino insistiu na pergunta.
— Se um navio afundar em mar gelado a gente vira picolé?
O pai desconversou, contando-lhe a história do profeta Jonas apanhado por um peixe gigante.
— Peixe grande comeu o profeta?
— Não comeu! Dizem que a boca do tubarão-baleia é como uma sala de estar, e quando a presa é grande, fica ali por algumas horas ou dias, antes de ser empurrada para as entranhas do animal. O profeta Jonas, julgando estar numa caverna, tateou, até encontrar uma corda, talvez as cordas vocais da baleia ou as guelras. Isso provocou cócegas insuportáveis no animal, que, dando um espirro gigantesco, atirou o profeta na praia.
Até certo ponto, Fernão era perfeccionista, criterioso naquilo que gostava de fazer. Conversava com seus brinquedos e achava que eles eram capazes de obedecer às suas ordens de comando. Claro que quase toda criança tem ou teve sua fantasia de viajar num mundo encantado em que ela seja poderosa. Ser um Policial, ser um Bombeiro que resolve tudo, chegando na hora certa com seu Trovão Azul... thu... thu... thu.
Apaixonado por navegação, Yuri mantinha em casa um tesouro em réplicas da navegação e da aeronáutica. Aprendera a brincar, desafiar os perigos, nas grandes fantasias da imaginação, com o intento de ocupar a emente do filho. Fizera até uma miniatura do 14BIS, com motor movido a metanol e divertia-se controlando da terra aquela engenhoca como se fosse Santos Dumont, sobrevoando Eiffel. Temendo reprimenda da mulher, Yuri guardou a sete chaves a certidão de nascimento do filho. O varão tinha nome de gente famosa: Fernão de Noronha Capelo.
— Não sou ouvida nem para escolher o nome de meu filho. Essa criança vai ter trauma com o nome — disse a mãe ao tomar conhecimento do registro de Fernão. Ela entrou no quarto e trancou a porta com duas voltas na chave. Ele saiu de casa. Era uma tarde cinzenta do mês de agosto, quando o pai de Fernão abandonou a família.
***
Trecho de "Esterela que o vento soprou."
Trecho de "Esterela que o vento soprou."