A vingança

O dia amanheceu sereno, nuvens mescladas de rosa se sucediam num céu de azul claro. Pelas ruas antigas Bertha caminha em direção ao trabalho. Todos os dias a rotina é a mesma, descer do ônibus correndo, atravessar a praça, repleta de mendigos sem tempo de olhar, os rostos anônimos, como o dela e que como ela, caminham sem nada ver, perderam os sonhos... com eles a capacidade de se emocionar, de desejar um mundo melhor . Os jornais exibem folhas sangrentas de tragédia e desamor, e as pessoas se acotovelam para ler os crimes que são contados em letras enormes e fotos escabrosas...

No bar um garçom sonolento atende os fregueses de má vontade, pede um café pingado e um pão com manteiga, que mastiga por pura rotina, joga o dinheiro sobre o balcão encardido e sai apressadamente para não bater o ponto atrasada. A gerente já está tentando abrir a porta da loja, nem lhe deseja um bom dia e olha pra ela, com o desprezo que fita todos os subalternos, Bertha não se altera, já se acostumou a ver aquela velhota magra, parecendo mais uma tábua de passar, humilhando as pessoas, tentando descontar nos mais simples suas frustrações... Como deve ser triste se olhar no espelho e só visualizar ressentimento e amargura, pensa, e só consegue ter pena, acha que dona Mafalda, maltrata todo mundo, porque nunca deve ter sido amada... Sem uma palavra Bertha ajuda a levantar a porta enquanto o rapaz que faz entregas vai tirando as coisas do caminho para que possam entrar na loja as escuras, ali parece que sempre é noite... Aos pouco vão arrumando as caixas colocando nas bancas de ofertas roupas sem atrativos, saldão, como falam na gíria. Dona Mafalda começa a conferir o caixa do dia anterior... Daqui a pouco vai chamá-la, para que faça os cálculos mais difíceis, pois sempre se atrapalha e fica achando que alguém a roubou, não confia em ninguém... - Berthaaa, venha aqui. Ela grita. – Já estou indo, - responde ao mesmo tempo em que pensa, ela jamais agradece ou pede, por favor. Aproxima-se e sente-se enjoada com cheiro de cigarro que exala daquela pele seca, parecendo um pergaminho. Até o perfume se torna desagradável ao contato com o odor provocado pela nicotina... Refaz as contas e mostra para chefe que o caixa está certo. Aliviada a megera se prepara para infernizar a moça da limpeza, passa os dedos nos balcões e diz que estão imundos que deve ter meses que não são limpos; paciente, Dasdores, limpa tudo com álcool. Antes de terminar a velhota já está berrando do banheiro – Isto aqui parece privada pública, ninguém agüenta, anda logo, vem limpar este vaso. A moça pega um balde e um pano e vai ao encontro da gerente que por sua vez já está no terceiro cigarro. Logo esquece da limpeza como uma criança mimada que tem muitos brinquedos e por isso logo se cansa. Olha o relógio e pergunta - onde está Francesca?- Bertha responde: - ainda não chegou o trânsito hoje não está muito bom. – Você já esta desculpando aquela sonsa, ela deve ter ficado na farra até tarde, depois vem com a desculpa esfarrapada que o trânsito está difícil. Mentira ela não gosta é de trabalhar... – Dona Mafalda ela mora longe e ainda tem de deixar a filha na creche. – Pois acorde mais cedo, não tenho culpa se ela não pensou antes de se encher de filhos. E é capaz de arranjar mais, você duvida? – Bertha finge que não está ouvindo. Sabe que no fundo a gerente inveja a loura alta e esguia que não faria feio numa passarela. Cinco minutos depois Francesca entra, pedindo desculpas pelo atraso. A gerente começa a esbravejar como se a moça tivesse se atrasado, por horas. - Dona Mafalda eu parei pra tomar um café no bar, pois não deu tempo de fazê-lo em casa. – Claro fica dormindo até tarde, parece até que é a patroa. – Francesca vai em direção ao quartinho para trocar de roupa e ainda ouve os impropérios da gerente...

Minutos depois volta, dir-se-ia ser outra pessoa... Os longos cabelos presos, sem pintura e um jaleco que deixaria sem curvas qualquer mulher. È assim que tem de trabalhar, ordens da gerente... Francesca só agüenta porque tem que sustentar a filha e como ganha por comissão consegue ter um salário melhor, que o salário mínimo, que a maioria das lojas lhe pagaria. Desanimada vai para frente da loja e fica esperando os clientes.

Bertha disfarça e se aproxima da amiga. – Francis, toma cuidado, qualquer dia a maluca coloca você na rua. Você não sabe que ela gosta que os funcionários cheguem quinze minutos antes? – Eu sei Bertha, mas, teve um acidente feio na Avenida Brasil não tive como chegar antes. – Bertha já estava se afastando da amiga quando ouviu o grito da velha – Berthaaaaaaaaa deixou o caixa sozinho, ta querendo ser roubada. – Já estou indo dona Mafalda, vim pegar a correspondência... A moça pega as cartas que estão no escaninho e vai levar no pequeno escritório onde a fera fica fingindo que trabalha... o cheiro de cigarro junto com o odor do incenso lhe embrulha o estomago, ela entrega a correspondência e já vai saindo mas a gerente manda que ela volte. Bertha suspira buscando um pouco de paciência, não gosta de ficar ali. O escritório da megera é cheio de objetos esotéricos, são pedras, bruxos, gnomos, coisas para dar sorte, Bertha respeita muito estas coisas, mas sabe que ali não existe conhecimento e sim superstição. – a senhora quer mais alguma coisa? – Quero saber quando chegou essa carta? – Bertha olha o envelope com as cores dos Estados Unidos que a Dona Mafalda quase esfrega em seu rosto... – Eu acho que deve ter sido no sábado, pois entrego a correspondência a senhora todos os dias. – O correio então atrasou? Perguntou a velha, e continuou o interrogatório... Porque esta carta deveria ter sido entregue na sexta-feira, falou controlando a irritação, e eu não recebi, posso saber por quê? Bertha ficou sem saber o que responder. Dona Mafalda começou a gritar - Seu Moisés chegou no sábado e pode vir aqui a qualquer momento e eu não vou ter tempo de mandar vocês fazerem uma faxina caprichada. Anda, chama os outros temos de dar um jeito antes que os patrões cheguem por aqui. – Bertha saiu às pressas e foi chamar os outros funcionários enquanto a gerente andava e vociferava como uma fera enjaulada. Dava pena ver os funcionários todos nervosos diante do acontecido. Como um general numa batalha a velha dava ordens enquanto fumava um cigarro atrás do outro... Estoques saiam dos armários, balcões eram arrastados, o sabão formava bolas coloridas pelo chão. No meio de toda esta confusão surge um rapaz e fica olhando as vitrines... Francesca talvez pelo hábito de vender larga a vassoura e vai atender o possível freguês... Dona Mafalda tem uma crise... - Já está fugindo do trabalho, sua preguiçosa, não serve pra nada mesmo, numa hora dessas em vez de ajudar você larga tudo e nos deixa sozinhos com tudo o que temos para fazer... Francis fica vermelha de vergonha, pega a vassoura e volta esfregar o chão. A velha se dirige ao rapaz. – O senhor não viu que a porta está meio arriada, se o senhor não sabe isto significa que ainda não estamos atendendo. – O rapaz fica sem jeito e pede desculpas. Dona Mafalda repara melhor e observa na camisa de seda e nos sapatos de couro italiano, e sorri mostrando uns dentes amarelados pela nicotina. Não precisa se desculpar é que esta vendedora não é mole, chega atrasada e sempre arranja uma desculpa para não pegar no pesado. O rapaz sorri sem jeito, no entanto não deixa de olhar a bela mulher que advinha está escondida naquelas roupas ridículas, que lava o chão sem levantar os olhos... – Não se preocupe eu vou dar uma volta enquanto a loja não abre. – No geral abrimos mais cedo é que hoje o patrão deve vir por aqui, pois voltou dos Estados Unidos no sábado e ninguém me avisou, acho até que de propósito, falou alto para que Bertha ouvisse, são todos uns incompetentes se eu fosse a dona mandava todos embora, onde já se viu esconder da gerente uma coisa tão importante. Sabe o que é confiam na bondade, ou melhor, na falta de pulso do patrão que pouco está ligando para isso aqui. Fica viajando, conhecendo o mundo e deixa tudo nas minhas costas. É, mas como é o dono não posso fazer nada... - E acendeu um cigarro. O rapaz se afastou, mas antes deu uma olhada para Francis... E ainda pode ouvir a velha aterrorizando os outros funcionários.

Já passava das onze horas quando o rapaz voltou desta vez acompanhado, de outro mais velho, mas igualmente elegante. Francis sorriu perguntando se podia ajudá-los e Bertha que estava voltando do Banco, reconheceu de imediato o Seu Moisés. Correu para avisar a dona Mafalda que saiu às pressas ao encontro do patrão e quase caiu ao tropeçar num cesto de ofertas.O rapaz disfarçou o riso e fingiu olhar as vitrines..

Dona Mafalda seguiu o seu Moisés até o escritório, enquanto o rapaz conversava com Francis. O caixa ficava logo abaixo do pequeno escritório e Bertha não pode deixar de ouvir Seu Moisés reclamando do estado da loja - . As vitrines estão horríveis e dentro da loja não existe iluminação. O que está acontecendo que em apenas um ano a loja ficou com aspecto de quitanda. - Perguntou pelo antigo vitrinista, rapaz cheio de idéias que deixava a loja com ares jovem e ousado. Dona Mafalda respondu que estava muito dispendioso e por isso o dispensara. – Seu Moisés perdeu o controle. Quem é a senhora para dispensar meus funcionários? Matheus era um excelente vitrinista e filho de um grande amigo a senhora não tinha este direito. E por que minhas vendedoras estão vestidas como solteironas do século passado? A senhora não sabe que a graça das moças é essencial num ambiente de vendas. Não reconheci nem mesmo a Bertha sempre tão elegante agora metida num jaleco horroroso. Aqui não é um convento de freiras, esbravejou. - Bertha ouvia tudo e no fundo estava gostando de ouvir dona Mafalda provando do mesmo veneno que dava aos outros... Sorrindo Francis nem se dava conta do que estava ocorrendo só tinha olhos para o rapaz educado que lhe fazia elogios... Acostumada a ouvir galanteios vulgares estava encantada com os modos do cliente. Só se assustou quando Bertha se aproximou pedindo licença e falando que o Sr. Moisés o chamava ao escritório... E só então descobriu que Luciano era o filho do Seu Moisés que vivia com a mãe nos Estados Unidos... Quando dona Mafalda viu o rapaz entrar quase desmaiou lembrando das coisas que falara pela manhã... Luciano sorriu vendo o espanto da gerente, mas procurou acalmá-la dando a entender que nada falara ao pai sobre o encontro da manhã... Logo depois saíram e seu Moisés falou que faria algumas alterações no quadro de funcionários... Luciano ao se despedir de Francis notou que a moça tinha perdido a espontaneidade. – Voltaremos a nos ver pode ter certeza, ele falou.

No outro dia Francis recebeu flores do campo, no cartão a assinatura de Luciano.

Bertha era única que sabia do assédio do rapaz. Francis tinha medo de perder o emprego. Dois dias depois mais flores, agora com o convite para um almoço. Que ela recusou. Na sexta feira ele apareceu com o pai e a moça ficou sem graça quando ele ao invés de acompanhá-lo ficou no balcão puxando assunto com ela. Ele voltou a convidá-la para almoçarem juntos mas ela deu uma desculpa. O rapaz pareceu desapontado.

Depois da visita do Seu Moisés, Dona Mafalda controlou um pouco o gênio ruim talvez por medo de ser descoberta... E Francis não sem uma pontinha de dor não recebeu mais flores ou convites... Parecia que tudo voltava ao normal. Quinze dias depois ele voltou com o mesmo sorriso sedutor e Francis não pode deixar de pensar que seria bom se ele não fosse rico assim ela poderia dar uma oportunidade a si mesma de ser feliz. – Francis agora você não terá como recusar você vai almoçar comigo amanhã durante o expediente, mas não se preocupe que a Bertha e meu pai também irão. Sem desculpas desta vez... A moça não soube o que responder até porque o Seu Moisés entrara e foram os dois para o escritório falar com Dona Mafalda.

Ao irem embora Luciano voltou a falar no almoço, Francis já falamos com Dona Mafalda para ela dispensar você e Bertha para almoçarem conosco amanhã.

No dia seguinte as duas saíram mais cedo para o almoço e dona Mafalda teve que ficar no caixa, estava roxa de inveja... Até o último momento ficou recomendando que elas evitassem falar nos problemas da loja com o patrão. Na verdade estava morrendo de medo do patrão descobrir o tratamento que dava aos funcionários...

O almoço foi tranqüilo apesar dos olhares insistentes que Luciano lançava a Francis. Seu Moisés fez perguntas objetivas e descobriu que colocar dona Mafalda na gerência foi um erro, mesmo sem Bertha abrir o bico... Luciano fez Francis prometer que sairia com ele na tarde do próximo sábado. Saíram e ela descobriu que ele era muito simples que perdera a mãe há um ano atrás, fora por isso que seu Moisés viajara, queria ficar junto do filho... afinal eles sempre se deram bem e o filho só morara com a mãe porque na época acharam melhor para sua educação. Ela também contou que tinha uma filha e que por isso parara a faculdade mas assim que a menina estivesse maiorzinha ela voltaria a estudar. O rapaz falara que a admirava e que de certa forma ela parecia ser uma mulher forte como fora sua mãe. Não demorou para que entendessem que estavam se apaixonando. Outros encontros se deram e Luciano resolveu falar com o pai sobre o que estava se passando. Ultimamente seu Moisés andava cheio de planos sobre a loja e um deles era colocar a Bertha na gerência e transferir dona Mafalda para loja de Madureira. Seu Moisés ficou feliz com a escolha do filho, preferia uma moça simples a alguma patricinha... Meses depois numa pequena loja em Madureira o carteiro entregou um convite para dona Mafalda.

Moisés de Castro e Angelina Dias,

Convidam para o casamento de seus filhos

Luciano e Francesca

A megera quase enfartou de raiva pensando que perdera a gerêrencia, para aquela falsa, da Bertha e agora aquela loura odiosa seria sua patroa.

jacydenatal

25/08/2007