Dona Q.J. (conto)
Para a Velhinha de Taubaté, in memoriam.
"Os políticos hoje eram bonecos de marionete, que faziam gestos e tomavam atitudes porque dois ou três financistas por trás lhes puxavam pelos cordeis..." (Eça de Queirós, "Os Maias", Portugal, 1888)
Em algum lugar destes pagos, de cujo nome não quero me lembrar, há não muito tempo vivia uma senhora, da família tradicional brasileira, bela, recatada e do lar, administradora doméstica, de planilha na mão, caneta na orelha e voz empostada. Nossa heroína valorizava o passado de glórias do Estado, a tradição do folclore, a politização do povo e o orgulho nativista. Nos idos tempos de sua juventude, até pegou em armas - o .38 do avô que serviu em 1932 - e se uniu aos valentes, na Praça da Matriz e Palácio Piratini, em defesa da Legalidade.
De lá para cá, talvez por causa do calor infernal dos últimos verões, passou a ler muitos santinhos de candidatos políticos, folders de propaganda gerencialista, soluções mágicas para a gestão pública, reportagens semiimparciais da imprensa. Começou a ficar encantada por um gringo, excelente administrador público, que fez um trabalho ótimo na Serra, que não se comprometeu com ideologias partidárias, que não fez promessas de campanha.
Em pouco tempo, nossa não mui engenhosa Dona Alfonsa Q.J. virou cabo eleitoral, sempre pronta para defender seu Dulcineio. Ela acompanhou eufórica a vitória de seu eleito, e bradava para quem quisesse ouvir - e especialmente para quem não quisesse:
- Aceitem! Dulcineio é o melhor que este Estado poderia ter.
Naturalmente, participou da festa da posse. Dirigiu-se à Praça e, vendo gente engravatada, empresários apoiadores da campanha, tomou-os por cidadãos de bem:
- Como são distintos os nossos correligionários! Este é o melhor governador!
Na empolgação dos discursos de posse, refletiu que, para melhor servir o seu Estado e o seu eleito, deveria ser participante do governo. Esse era o jeito mais digno. Manifestou essa aspiração a um dos Gravatas, e prontamente, em alguns dias e alguns telefonemas, foi nomeada ASsessora COmissionada NEcessária. Agora sim!
Em sua primeira tarefa, recebeu no Palácio jovens donzelas representantes de grandes empresas, e as acompanhou, com toda a cortesia, até os gabinetes dos assessores e deputados da base de apoio. Teve a plena convicção de ter contribuído para as melhores negociações feitas pelo governo para o desenvolvimento do Estado.
Ainda no primeiro mês de trabalho, deparou-se com inimigos da Virtude: pessoas barulhentas, com sinetas, que gritavam diante do Palácio contra Dulcineio:
- Canalha! A primeira medida é aumentar o próprio salário! E o nosso piso?
Não teve dúvidas: passou a xingar os manifestantes e exigir-lhes respeito:
- Mortadelas! Dulcineio é o maior! Piso é na loja de material de construção.
Entrou no meio da massa de manifestantes com o dedo e o verbo em riste. Mas não esperava que os seguranças do Palácio a arrastassem junto dos Malvados...
Horas depois, chegou em casa com escoriações encontradas pelos familiares. Estes ouviram sua versão dos fatos, e decidiram que o melhor a fazer era queimar todos os santinhos, pôsteres, notícias sobre Dulcineio que ela colecionava.
- Tia, a senhora não pode sair por aí enfrentando as pessoas pelo governador!
- Bobagem! É o melhor para o Estado! Tenho que lutar e trabalhar por ele!
Uns meses depois, ela voltou ao trabalho, agora acompanhada pela vizinha, já devidamente catequisada sobre o valor do Dulcineio, e pela recompensa a receber.
- Então eu posso ganhar uma cesta de fim de ano se eu for com a senhora?
- E muito mais, minha cara Sancha! Tu serás minha assistente comissionada.
- Eu vou ser a C.C. da C.C.? E ainda posso ganhar uma cesta de fim de ano!
Chegaram as duas na Praça, e encontraram nova manifestação. Agora contra a falta de lisura das negociações com empresas de energia eólica. Além das faixas, apitos, sinetas, já habituais, havia totens de cataventos gigantes e bonecos-de-posto.
"Dulcineio, tu não é bobo! Aumentou o ICMS, e quem paga é o povo!"
"Dulcineio mãos-de-tesouras! Parcelou o salário das professoras!"
Dona Alfonsa não se conteve e atacou os cataventos gigantes:
- Pilantras! Dulcineio é o maior! O sacrifício de cada um é para o bem de todos!
Uma pá dos cataventos enganchou na sua blusa, e rasgou um braço de um boneco-de-posto. A pressão do ar explodido lançou Dona Q.J. um metro longe. Mas ela continuou ameaçando com sua caneta e admoestando a todos a plenos pulmões.
- Mortadelas! Dulcineio está fazendo tudo pelo equilíbrio financeiro do Estado!
Um grupo de manifestantes, auditores fiscais do Estado, solidarizou-se com sua queda e ferimento, e ofereceu sua faixa de protesto como maca para conduzi-la. Mas ela os tomou por inimigos que vinham atacar a ela e à honra de seu Dulcineio. Não percebeu o cuidado nem as propostas de solução dos auditores, só os protestos:
"Dulcineio quer vender as nossas estatais mais lucrativas para os comparsas!"
Arrancou uma faixa da mão de uma professora, tirou a sineta da mão de outra.
"Encobre isenções fiscais suspeitas de grandes empresas!"
Avançou contra o guri do megafone, empurrou ele e os que estavam próximos...
"Aumenta imposto, parcela salário, e não paga a dívida com a união!"
Começou a rasgar uma faixa de um servidor, e a rasgar camiseta de outro!
"Quer extinguir fundações, demitir concursados, e contratar C.C.s!"
A boa Sancha veio resgatá-la, que já estava atordoada com a função toda. Mas num instante, a cavalaria da Polícia Militar avançou contra todo mundo. E as duas acabaram desacordadas debaixo de um quadrúpede.
Alguma boa alma chamou a ambulância, e horas depois, quando dona Q.J. acordou, estava em casa, em sua cama, rodeada de parentes e da querida - e ferida - Sancha. A família cuidava para não lhe trazer notícias sobre o governo durante todo o período da sua convalescença. Não tinha propagandas, nem reportagens, nem novidades que pudessem afetar seus frágeis nervos.
Ninguém lhe falou, também, que tiveram que mexer nas suas economias para comprar os medicamentos para sua melhora. Sim, aquele fármaco desenvolvido desde sempre pela Fundação de Pesquisa em Saúde e que era distribuído gratuitamente, agora é vendido por um laboratório estrangeiro. Porque a Fundação foi extinta.
Dona Q.J. ainda retornou ao trabalho. Naquele dia não houve protestos diante do Palácio. Já tinha sido extinta a última Fundação e vendida a última estatal lucrativa, e a Folha de Pagamentos do Estado já tinha encontrado a do mês seguinte. Servidores concursados tinham sido demitidos, a tal dívida com a União continuava. Mas alguns cargos, privilégios e isenções - dos três poderes e de amigos do setor privado - permaneciam intocados, até reforçados. O choque dessas descobertas e o desapontamento decorrente delas foram grandes demais para seu coração. Dona Q.J. morreu como uma triste figura.