Caminha Tião, caminha...

“Todos os nossos homens supostamente bem-sucedidos são doentes, com estômagos ruins e almas piores.” John Steinbeck

Tião saiu do banheiro enxugando os cabelos, calçou o chinelo que estava sobre a calçada e puxou de leve o rabo do gato que se encontrava dormindo em cima da mesa da varanda. Lembrou-se que antes de ir à casa da namorada passaria no Bar do Sol para pagar sua dívida e tomar um trago do afamado licor de cachaça.

Depois de escovar os dentes e trocar de roupas, saiu fumando devagar. Andava cuidadosamente para não pisar nas poças de lama da última chuva. Passou por uma esquina onde três jovens sussurravam enquanto manuseavam seus celulares. Sem nenhuma pressa, e devolvendo para o ar suas longas tragadas, adentrou na penúltima quadra antes do Bar. No terreno baldio do lado, crianças corriam atrás de uma bola velha e murcha.

Antes de chegar ao canteiro central, que separa a vila onde mora do resto da cidade, viu que passava um cortejo fúnebre. Pensou que não conhecia quem havia morrido. Também não ficou sabendo se era algum morador da vila. Sabia apenas que o cortejo era muito reduzido e quem quer que fosse o morto estava mal acompanhado. Um carro, duas motos velhas e algumas bicicletas trafegavam rumo ao cemitério.

Um pouco à frente do cortejo, alguns cães em farra atrapalhavam o andar do carro da funerária. Dois homens na calçada tentaram afugentar, sem sucesso, os animais que se engalfinharam na disputa pela fêmea que se encostara ao muro úmido e descascado. Quando um dos cães, aparentemente, estava a ponto de vencer a disputa, um homem de chapéu jogou uma bomba no meio deles. A cachorrada espalhou-se para todos os lados. No cortejo, que seguiu devagar, poucas pessoas sorriam.

Mais dez metros e.....o Bar do Sol! Era uma construção rústica, medindo seis metros de frente por dez de comprimento. O seu interior era um pouco melhor do que o lado de fora. Dentro há uma mesa de bilhar, um balcão velho de madeira e duas geladeiras repletas de variedades etílicas. Nas paredes, pinturas musicais. Entretanto, o melhor do bar é o seu proprietário: um sujeito com o sorriso franco e cínico daqueles que sabem que estão se divertindo enquanto trabalham.

Sol passava uma vassoura na parede empoeirada quando Tião entrou com seu passo incerto e sua feição de cansaço. O botequeiro pulou de cima do tamborete, encostou a vassoura na parede e pediu que o outro se assentasse. Não era preciso pedir, porque Tião já se encontrava recostado em uma surrada poltrona de estofado vermelho. Retirava um cigarro do bolso enquanto Sol urinava no banheiro dos fundos.

Assim que terminou de fumar, abriu uma das geladeiras e retirou uma garrafa de licor de jabuticaba curtida na cachaça. Convidou o dono do bar para tomar com ele. O outro relutou, afirmando que não se pode beber em serviço. Tião disse, de modo distraído, que não se pode beber a ponto de não saber o que se bebe e nem o quanto se trabalha. No entanto, o botequeiro afirmou que se pode sempre acompanhar um amigo que está com sede e a fim de conversar. Ambos riram o riso curto e conivente da amizade. Eram risadas breves e entrecortadas por tosses minúsculas e tapas no braço do sofá.

A lista de produtos comprados, toda amarrotada e com marcas de sujeira, Tião a retirou de um dos bolsos da calça e a entregou para o vendeiro. O outro ria enquanto a punha sobre o balcão descascado. Era assim que ele mantinha o controle de seu próprio consumo. Aprendera com a mãe que se deve sempre saber o que se gasta. Ela dizia para o filho que aquilo que se ganha no jogo da vida e do trabalho é muito incerto e irregular, mas o que se gasta deve ser bem lembrado, pois é parte da gente que vai pra outra gente.

Sol apanhou um caderninho de capa axadrezada, que estava atrás do balcão, para conferir com a lista do amigo. Fazia isso não porque desconfiasse do outro, mas porque era parte de sua vida de comerciante, havia virado um hábito. E um hábito não é tão fácil assim de se desfazer. Tião fumava enquanto o amigo conferia item por item da lista de compras. Quando ele acabou, quase simultaneamente com o cigarro fumado pelo amigo, jogou o caderno de volta atrás do balcão e pegou mais uma garrafa do famoso licor. Essa é por conta, disse o vendeiro. Ao dizer isso, sorriu de forma prazenteira para ele.

Tomaram toda a garrafa. Levantou-se do sofá. O vendeiro tentou convencê-lo a ficar, no entanto, ele explicou que precisava mesmo ir, pois Joana o estava esperando. Então, enfiou a mão no bolso da calça e retirou algumas premeditadas notas para que Sol pudesse descontar a sua dívida. Antes de devolver o troco o vendeiro disse:

-Continua trabalhando na roça, Tião?

-Sim, respondeu ele.

-Mas, você não ia procurar um emprego registrado na cidade vizinha?

Claro que fui, pensou o homem, mas não encontrei. Fui a vários locais onde me disseram que eu poderia conseguir um emprego com registro em carteira, mas não havia vagas. Havia sim, uma fila de pessoas, inclusive pessoas daqui da vila, concluiu em pensamento. Recebeu o troco do vendeiro, colocou-o no bolso e, antes de sair, perguntou ao outro:

-Sábado à noite vai ter festa?

-Vai sim, e você tá convidado.

-Mesmo que não tivesse, eu vinha...

Saiu pisando firme e forte no chão, como quem pisa na arena do mundo. Parecia disposto a ganhar uma luta e a estourar de alegria. Olhava para tudo com olhos ternos. Tinha um andar altivo e resoluto. Caminhava como um herói. Quem o visse de longe, admiraria sua bela figura. De perto, saberiam que era apenas mais um trabalhador bêbado.

make
Enviado por make em 04/02/2018
Reeditado em 04/04/2018
Código do texto: T6244532
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