Vida de cão

"Os animais têm muitas vantagens sobre os homens: não precisam de teólogos para instruí-los, seus funerais saem de graça e ninguém briga por seus testamentos." Voltaire.

Gostava de correr no parque. Esbanjava saúde e ferocidade contidas. Corria na frente, puxando. Corria atrás, sendo puxado. Alguns ousados arriscavam e diziam:

-Cachorro de sorte!

-Veste a coleira!

O homem ao lado, sujeito ocupado que trabalhava no centro, implicava com os animais. Dão muito trabalho o gato e o cachorro, falava com o cenho franzido e a pressa dos aflitos. Se ele estivesse solto correria atrás de uma cadela e não atrás de uma atleta, arrematava.

-Eu lembro quando apareceu aqui no bairro...

-Ela ou ele?

Os dois vieram da capital. Ele pequeno e ela triste. Hoje, ela malha, dá palestra no AA e faz pilates. Ele, nem late mais de tão humano que ficou. Aos domingos, costumam passear no parque onde exibem sua saúde.

-Vamos, Lex!

-Ele tem filhos?

Sempre afirmava que não. Que o seu Luthor tinha pedigree e que viria da capital uma cadelinha pra ele. Pra não engordar e nem ficar estressado corria, pedalava, malhava com ele em casa e na casa dos amigos. Numa dessas não era bem vindo e cochichavam:

-Esse cachorro de novo?

-Gato de cozinha não quer companhia.

Certa vez, nem viu quando a motocicleta o colheu arremessando-o no canteiro central. Olhava para os olhos matreiros dela, que olhavam para o outro lado da rua. A cordinha saiu queimando de suas mãos enquanto o corpo esbelto do cão caía como uma pedra no telhado.

-Meu deus, meu Luthor!!!

-Calma moça, ele não morreu não.

Algumas pílulas e semanas depois manquejava pela casa. Ela vinha do trabalho para o seu abraço. Andava cansada, pouco corria. Começou a ficar pelos cômodos com um fone nos ouvidos. Quando o ouvia ganindo corria com a ração, o leite, uma alisada na cabeça triste e ruguinhas ao redor dos olhos. Deu para ouvir os amigos:

-O centro de zoonoses é mais prático.

-E mais carinhoso, também?

Numa manhã chuvosa chegaram com a carrocinha. Ela ligou o som para não ouvir o próprio soluço. Varreu, lavou, limpou o chão e as paredes para retirar de si o peso da culpa. Diziam os funcionários que o canil era o melhor para ele. Lá, ele teria a companhia de seus iguais.

-Ele não é como os outros.

-Só porque a senhora diz.

O canil era organizado. Parecia certas casas. Às vezes, passava um tempo sem conta com fome, noutras vezes chegava a fração da comida quando ele estava querendo apenas dormir. Por fim, já não dormia mais. Ora era o barulho dos gatos, o rosnar dos outros cães; os ganidos da ala dos filhotes e certos cheiros que emprestavam aos domingos um clima de esperança.

-O senhor prefere um filhote ou um experiente?

-Quero um amigo.

Um dia a cidade inteira diminuiu como um balão desinflado. De dentro de seu canil observava com olhos graúdos que a solidão é a companheira fiel dos cães e dos homens. Alguém chegava dizendo que a dona desse aí tinha ido embora. Percebeu que falavam dele quando lhe dirigiam o olhar enviesado e o sorrisinho entredentes.

-Ela foi com toda a beleza pra cidade grande e feia.

-E deixou o órfão.

Gostavam de seu pelo e de seu porte, mas quando o viam mancar desgostavam do conjunto por causa de uma parte. Não poderia correr com as crianças no parque, na praça, no campo, desculpavam. E ele foi ficando. A princípio triste, solitário, estéril, depois indiferente e, por fim, nervoso de fato.

-Não quer tomar banho, nem quer comer!

-Deixa, qualquer dia ele some.

A oportunidade veio com a chuva, novamente. Os pingos gelados batiam em seu corpo e o vento açoitava a portinhola da casinha. Ele olhava para o trec trec trec do trinco como se olha para o espelho. Numa rajada de vento a porta se abriu. Cautelosamente, pôs as patas dianteiras para fora. Desceu e correu se arrastando ao longo do corredor. Alcançou o pátio, após a cerca de arame havia um buraco no muro, por onde saíam os curiosos. Pôs a cabeça pra fora e admirou a cidade sob as nuvens.

-Óia lá, Frajola!

-Num falei, qui di veis in quando escapa um?

Saíram da moita, molhados e cheirando a fumaça. Aproximaram-se cautelosamente. O tamanho dele impunha respeito. Estalaram os dedos úmidos e encardidos. O animal olhou para eles, a seguir olhou para o buraco na cerca e balançou a espessa cauda. Pronto, já tinha um dono de novo.

-Ele é mansin, Zé! É mansin!

-Eu é qui num boto minha mão na boca dele.

No barraco cheirando a urina conseguiram um pedaço de colchão para ele. Tinha pouco trabalho. Era hóspede de dois ou três que zumbizavam à noite e chegavam de madrugada. Vinham pelas sombras dos muros e das árvores. Entravam pelos fundos e desabavam no colchão coletivo da sala. O cachorro levantava as orelhas e escondia os olhos graúdos nas patas.

-Chega pra lá Curinga!

-Deita no sofá, Frajola.

A edícula ficava na rua menos movimentada do bairro. Não tinha água, nem luz. Apenas velas e latas. Os dois ou três dormiam ali. Durante o dia faziam bicos, transportavam drogas no corpo e escapavam dos flagrantes. Saíam no começo da noite e deixavam o cão reinando sobre o abandono.

-Nóis podia discolá uma carni pra ele.

-U dia qui ele comê carni, eu como ele!

Acordava com o barulho do bairro. Os trabalhadores sortudos tinham emprego na cidade vizinha. Funcionavam seus fuscas, seus Gols e Paratis e saíam sonolentos para ganhar o dia. Na frente do casebre ele permanecia até o retorno do silêncio, que só era quebrado pelo ronco dos dois até às dez da manhã.

-Ele tá estranho, cê viu?

-É você qui fumou dimais.

Passou boa parte do dia tremendo. À tarde, depois de tomar água na sarjeta e nas poças de chuva melhorou um pouco. À noite, como de costume, teve fome. Farejou, cheirou, lambeu o que havia dentro do bolso de uma velha bermuda. A fome é maior que a coragem. Comeu, mas não saiu para a rua. Evitava competir. Sempre tivera espaço suficiente. E seu instinto o impelia a manter o espaço que tinha. Seus donos confusos:

-Porra, cadê as paradinhas daqui?

-Eu usava, si subésse!

Trataram de colar no teto com fita adesiva. Quando batia a vontade saltitavam para alcançar os papelotes. O cão olhava, lambia os beiços e se afastava resfolegando. Tinha fome, mas tinha medo também.

-Vamu dividi a marmita.

-Eu como os ovo, você o arrois, ele o fejão.

O dia prenunciava dificuldades. O primeiro sinal foi o silêncio. O segundo foi o ladrar de outros companheiros bem próximo dali. Entretanto, não teve medo. Estava deitado no velho sofá e escutou sozinho quando chamaram, depois derrubaram a porta a chutes. Tentou rosnar pra defender o território, no entanto de sua boca saía apenas uma baba amarela. Tentou latir, mas emitiu sons roucos parecidos com ânsias.

-Onde tá a droga? Vamos, fala!!

-Tá cu cão!

Mal ouviu o som do tapa e o baque surdo do moleque caindo no colchão da sala. Avançou de onde estava. Foi parado com um projétil no meio da testa. A boca continuava aberta, porém não babava mais. No cômodo, fumaça e lágrimas.

-Vai aprender a respeitar a polícia!

-Verdadi, sinhor, verdade...

Levaram os dois. O cachorro ficou de boca pra cima. Rígido e silencioso. O único som audível era o zum zum zum das moscas. Meia hora depois chegou a perícia. As pulgas e o sangue haviam abandonado o cadáver. No intestino do bicho encontraram resquícios de maconha, crack e feijão carioca.

make
Enviado por make em 31/01/2018
Reeditado em 05/04/2018
Código do texto: T6241528
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