ZECA, O MENINO ESCRAVO

Quando terminei o serviço militar obrigatório, em 1974, decidi mudar-me para a capital, porque na minha cidade as chances de trabalho e estudo eram quase inexistentes. O problema é que eu não tinha dinheiro para a mudança.

Uma irmã minha namorava um empresário da cidade, cujos pais eram fazendeiros. Eles planejavam uma grande festa, mas precisavam de alguém que realizasse umas pinturas na fazenda. Eu tinha reputação de pintor razoável e minha irmã me indicou para a tarefa, que demandaria umas três semanas e me renderia o dinheiro de que precisava. Aceitei.

Chegando à fazenda, receberam-me muito bem. Depois, o fazendeiro chamou um menino negro, que estava por ali, e disse:

- Este é o Negro. Ele será o seu ajudante. Mas não lhe dê moleza, que esse crioulo é folgado!

Estranhei aquilo. O negrinho não tinha nome? Além disso, o menino era franzino, esmirrado; rostinho chupado, de quem passava fome; vestia andrajos e andava descalço.

- Como é seu nome? - perguntei.

- Zeca. Mas eles só me chamam Negro.

- Quantos anos você tem, Zeca?

- Treze. Vou fazer catorze.

Havia escola num vilarejo próximo. Mas ele não a frequentava, não senhor.

Juntamos o material, os equipamentos; misturamos as tintas e iniciamos o trabalho. Ao meio dia, chamaram para o almoço. Lavei as mãos num tanque na lavanderia e encaminhei-me para a sala de refeições. Zeca sumiu pelos fundos da casa.

Findo o expediente da tarde, ao pôr-do-sol, como é de costume na zona rural, banhei-me, jantei e fui conhecer meu quarto, que ficava num prédio independente da sede da fazenda. Eram cinco quartos, todos muito limpos, espaçosos e bem mobiliados. Pude escolher o meu. Trouxera comigo uns livros e pretendia ler um pouco antes de dormir. Como era cedo, fui procurar o Zeca. Encontrei-o encostado à cerca que separava a sede da fazenda da área dos estábulos.

- Onde você dorme, Zeca?

- Nas baias.

- Como nas baias? Baias são abrigos para cavalos! Por que não dorme num dos quartos vagos da fazenda?

- Eles não deixam. Eu sou negro.

Zeca relutou muito, mas acabou permitindo que eu visse o lugar onde dormia. Era um pavilhão comprido, feito de madeira e coberto de zinco. Dentro, um corredor que ia de uma ponta à outra do pavilhão. De cada lado do corredor, uma fileira com oito baias, segregadas por tábuas pregadas horizontalmente e afastadas quinze centímetros uma da outra. As duas pontas do corredor eram abertas, para permitir a livre circulação do ar. As laterais e os frontões, excetuado o espaço da largura do corredor, também eram fechados por tábuas pregadas horizontalmente, sem espaços entre si.

- Onde é seu quarto, Zeca?

- É aquele ali. - mostrou.

Era uma baia comum, contígua às ocupadas por cavalos. A única modificação fora feita pelo próprio Zeca, que pregou tábuas para eliminar os espaços entre elas. Como sua baia era numa extremidade do pavilhão, ele só precisou fazer isso numa das paredes e, dessa forma, separou melhor sua baia, evitando que os cavalos pudessem babar ou sujar de outras maneiras o seu espaço.

Estava bastante escuro, quando entramos na baia de Zeca. Ele precisou acender uma lamparina a querosene, para que eu pudesse conhecer o seu "quarto". Num canto, o guarda-roupa, que consistia num varal de barbante de sisal, no qual se viam uns poucos trapos pendurados. A cama eram dois pelegos* velhos e encardidos, estendidos no chão, e um velho cobertor de mungo, já com alguns rasgões visíveis. Numa das paredes, pendurada num prego por um furo no cabo, uma velha frigideira amassada e uma colher de folha-de-flandres. Eram a louça e o talher do Zeca, que não podia comer nos pratos dos brancos. Completando o mobiliário, um tamborete de lata, virado, que servia de criado-mudo, sobre o qual repousavam o lampião a querosene e uma caixa de fósforos. E era tudo. O menino não tinha, sequer, um par de sandálias!

Perguntei onde ele comia. Ele disse que pegava sua frigideira, ia até a porta da cozinha, onde a cozinheira, mulata, o servia - e xingava, sempre - e voltava para a baia, onde então comia.

- Você não tem família, Zeca?

- Não tenho, não senhor.

- Não me chame de senhor, Zeca. Meu nome é José. Vamos nos tratar por amigos, ok?

- Se seu Antonio ouvir eu chamar o senhor de amigo, ele me bate.

- Como bate? Não vai me dizer que você apanha dessa gente!

- Apanho.

Zeca mostrou-me várias marcas, em diferentes partes do corpo, resultantes de surras, segundo ele. Como eu insisti sobre a família, ele me disse que seu pai fora "matado", mas que não se lembrava dele, pois era ainda bebê quando o mataram. De sua mãe, tinha uma vaga lembrança, porque vivera com ela até os quatro anos, quando, então, o trouxeram para a fazenda. Mas, segundo os fazendeiros, ela era "bêba" e puta, disse Zeca.

Levei Zeca até o meu quarto e perguntei se ele queria dormir na outra cama que havia ali. Ele ficou assustado com a oferta, agradeceu e disse que não podia aceitar. Seu Antonio o mataria se aceitasse! Enfiei a mão numa sacola, tirei um tablete de chocolate e lhe dei. Seus olhos brilharam e uma lágrima escorreu-lhe pela face. Agradeceu, deu boa noite e se foi.

Peguei um livro e procurei ler até às onze horas, quando o gerador seria desligado (havia luz elétrica na sede e nos quartos de hóspedes. Só não havia luz no tugúrio do Zeca). Não consegui me concentrar na leitura. A servidão de Zeca não me saía da cabeça. Pela manhã, o modo como o menino era tratado por todos não deixou dúvida sobre sua condição. Era "negro" pra cá, "negro" pra lá. Na hora do café, deram-lhe uma batata doce e café preto, numa caneca improvisada com uma alça numa lata de salsichas. Quando terminei o meu café, peguei um pedaço grande de pão caseiro, passei-lhe bastante manteiga e levei para ele, que comeu com medo, escondendo-se e olhando para os lados, para certificar-se de que ninguém da fazenda o via.

Naquela manhã, enquanto trabalhávamos, eu perguntei a Zeca como ele aguentava aquela vida. Ele então me segredou:

- Eu já vou fazer catorze anos. Quando fizer quinze, vou botar fogo nisso tudo aqui. Depois me jogo no mundo!

Decidi que meu trabalho só iria até o meio dia. Voltaria para a cidade e denunciaria aquela situação às autoridades. E o fiz. Chegando à cidade, procurei minha irmã e comuniquei-lhe a minha decisão. Ela me disse que eu ia perder meu tempo; que essa denúncia já fora tentada antes e deu em nada. Disse que uma das filhas do fazendeiro, estudante de direito, estava sensibilizada com a situação, mas não tinha coragem de denunciar os pais.

Procurei essa moça e ela me disse que procurava um abrigo para o Zeca em alguma instituição, mesmo que para isso tivesse que levá-lo para a capital. Questionada sobre por que deixara a situação chegar a tal ponto, ela disse que não foi sempre assim; que as coisas pioravam à medida em que o menino crescia; que em suas últimas visitas à fazenda identificara aquilo como um caso de escravidão. Por fim, disse que eu não me preocupasse que ela resolveria aquela situação.

Arranjei trabalho em Bagé, no sul do estado, antes de ir para a capital. Meses depois, minha irmã me disse que o Zeca, finalmente, estava num abrigo para menores órfãos, em Porto Alegre.

(*) Pelego: pele de carneiro com a lã.

Este conto baseia-se em fato real, vivenciado pelo autor.

José Luiz Barbosa de Oliveira
Enviado por José Luiz Barbosa de Oliveira em 29/01/2018
Reeditado em 30/01/2018
Código do texto: T6239099
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