Por muitas razões

- Sexo costumava ser divertido.

Sentado na poltrona em frente à Glória, o analista escreveu algo em seu bloco de anotações.

- Costumava? Não é mais? - Indagou, expressão tranquila.

Glória parou para pensar, mexendo os dedos dentro dos sapatos de salto.

- Creio que nos primeiros meses... ou pelo menos, até meados do segundo ano após o casamento... costumava ser divertido, sim. Bom, tudo era novidade, né? E antes, Rafael e eu tínhamos sexo, mas a gente se via pouco e nem sempre rolava... pensávamos que depois que casássemos, isso iria se resolver, pois estaríamos morando juntos e dividindo a mesma cama. E funcionou. Pelo menos, durante o tempo que citei... e depois... foi diminuindo.

- Um dos dois decidiu não mais procurar o outro? Ou o desinteresse foi mútuo?

Glória afundou-se na poltrona, olhando para o ventilador de teto, no momento desligado. O sol da tarde filtrava-se pela persiana da janela por trás da poltrona do analista, criando um padrão de luz e sombra sobre o carpete no chão.

- Eu creio que... bom, nós dois temos nossos empregos e trabalhamos muito, de segunda à sexta. Então, meio que fomos cortando o sexo durante a semana e reservando uma noite... que sempre coincidia ser sábado... para isso. Depois de uns dois, três anos, começamos a tentar recuperar um pouco de vida social, já que até então estávamos basicamente vivendo em função um do outro. E aí, começamos a sair no sábado à noite... e nem sempre estávamos com disposição de fazer sexo ao voltar para casa... ou no domingo.

- Não há nada intrinsecamente errado em não querer sexo, desde que ambos estejam confortáveis com isso; há outros componentes dentro de um relacionamento - ponderou o analista. - Mas me parece que, ao tomar esta decisão, mesmo que não tenha sido verbalizada, vocês também engavetaram a ideia inicial de ter filhos, correto?

Glória entrelaçou os dedos, mãos no colo.

- Quando nos casamos, pretendíamos ter filhos, verdade... mas sempre dissemos que íamos esperar pelo menos dois anos, para termos melhores condições financeiras de trazer uma criança ao mundo.

O analista exibiu uma expressão de dúvida.

- Você falou em filhos... e depois em "uma criança". De algum modo, sentiu que suas perspectivas foram se estreitando?

Glória suspirou.

- Nós temos medo, doutor.

- Medo de?

- Medo do futuro. Talvez não do nosso juntos, pois creio que mesmo com a redução do interesse sexual, nos comprazemos na companhia um do outro... mas, medo do estado das coisas, que parece ficar pior a cada ano. Eu me pergunto se temos o direito de colocar alguém num mundo sombrio como esse em que vivemos.

- E, mesmo assim, as pessoas não deixam de nascer - comentou o analista. - Mas o que você deve se perguntar é se isso não representa também o receio pelo fim do relacionamento, sinalizado pelo desinteresse sexual.

- Eu sempre li... - hesitou Glória - que quando uma mulher dá à luz, seu interesse sexual diminui. Fico me perguntando o que acontecerá se eu tiver um filho, já que praticamente não tenho mais vida sexual...

- E ao abrir mão de sua vida sexual, você também elimina essa possibilidade?

Glória permaneceu em silêncio por alguns instantes.

- Eu... ainda quero ser mãe, doutor. Mas talvez...

E respirou fundo antes de trazer à tona as palavras que trazia guardadas em seu íntimo:

- ...talvez, não de um filho do Rafael.

- [26-01-2018]