Copos Quebrados
O copo de alguém quebrou,
entretanto, não foi o meu.
Geralmente quando quebra,
alguém morreu. Não era o
meu.
Meu copo apodreceu com
vinho velho ao fundo.
Vinho de outras vidas;
Vinho de outros seres;
Vinho podre ao fundo.
(As uvas e o álcool)
Fizeram-me um convite
e convites não recuso.
Copo podre onde desfaço
todo pedaço meu, onde
afogo toda mágoa minha,
onde aporto o inferno seu
e tudo o que está por vir,
ainda.
O virar das garrafas
para enchê-lo ecoa
pelo vazio dos goles.
Mãos a tocá-lo, bocas
a beber dele, vícios
preenchem-lhe.
A repetição de sinas;
a repetição de seres;
a repetição de mundos.
O som alto ao fundo;
o som alto da chuva;
o som alto dos seres:
O copo de alguém quebrou,
porém, não sei se foi o meu.
Estou a olhá-lo, vômito
a escorrer dele, jamais
a findar a sede.
Balança, treme; vista
escurece.
(A chuva e o desmaio)
Em água morna, de molho;
tomando água da chuva e
detergente neutro, até
o sumiço da mancha.
No interior, sinto-me roxo.
É outro dia e não preciso
de ajuda; seu resquício
me chama.
Sugeriram vinho branco
e irei tomá-lo até
perder o tino.
Balança, treme; vista
escurece.
(A chuva e o desmaio)
Tinto, em meu interior.
Vícios ao meu redor.
O inferno seu em ardor
perpetrando-se em meu
vinho-mundo.
Não há modo de descolorir
as manchas de vinho em
meu interior. Estou como
uva velha, passada, gasta:
um ser trôpego, grogue,
amassado e falso. O eco
das vozes pedindo mais,
empurrando-me mais,
virando um pouco mais,
criou um eterno zunido
a importunar o cérebro.
A dor de cabeça
durará séculos.
A uva e o álcool, lépidos
e unidos, não conseguem
consertar o que há de errado
comigo.
(Possivelmente é algo sério)
Fizeram-me um convite
e convites não recuso.
A repetição de vidas,
a repetição de mundos.
o som alto de batidas
tocadas por moribundos:
Isto pede um brinde, com
meu copo velho e vinho
vagabundo.
Não, não! Onde deixei-o?
Onde deixei meu mais
querido ente, o copo
de vinho podre ao fundo?
Vinho de outras vidas;
Vinho de outros seres;
Vinho de meu velho
mundo.
(Alcoólico mundo falso)
Em desespero sujo
recobro os dias por
onde a memória
pisca e conta,
borrada, o que
houve.
Silêncio total.
Retorno para o molho
morno e vinho branco
pútrido.
Retiro espiritual para
apagar manchas na
dignidade, memória
e interior: não
funciona.
Quem sou e o que
farei agora? Sem
meu copo não
possuo amor,
ninguém me toca
e mal falam comigo.
Vozes ecoam
a pedir mais,
empurrando-me mais,
virando um pouco mais;
em eterno zunido,
importunam o cérebro,
ainda dolorido.
Um século hipotético
passou neste meio
tempo e a dor persiste,
ainda.
Seu inferno é minha sina.
O virar das garrafas
para encher o sumido
ecoa o vazio dos goles.
O doce sabor de meu
copo podre onde
afogava as mágoas
minhas.
Meu tinto interior sujo.
Meu desespero único:
Ó, Copo podre onde desfaço
todo pedaço meu, onde
afogo toda mágoa minha,
onde aporto o inferno seu
e tudo o que está por vir,
ainda:
Onde meteu-se você,
vida?
Baque total.
O som alto ao fundo,
o som alto da chuva,
o som alto dos seres:
a memória única;
o momento da queda.
O copo de alguém ao
chão. O copo de alguém
quebrou.
A nítida memória:
O copo era o meu,
mas eu não havia morrido.
Então, como poderá
ter sido… como poderá
ninguém ter deixado-me
a par disso? Onde estão
os seres, meus amigos
de vício? Onde estão os
beberrões comigo desde
o início? Onde está o
velho vinho cujo
gosto me apodreceu?
Onde estão os convites
para apagarem o que
aconteceu?
Onde…
chegou.
Hoje (já) é sexta-feira
e chamaram-me para
algo.
Levarei um copo
qualquer e cigarros.
(A tragédia com o
último copo me
fez voltar a fumar)
Irei no meio-fio sentar
e, cigarro após cigarro,
com vinho a completar,
nada irá me chatear.
Faz frio hoje.