Dezembro sombrio

Lembro-me nitidamente do dia em que aquele pirralho apareceu na padaria, acompanhado do pai, e disse-me com cordialidade e firmeza:

- Quero aprender a fazer pão, senhor!

- Sim, ensino-lhe, mas antes, porém, quero saber se seu pai sabe da sua pretensão? – respondi, olhando-o nos olhos.

- Ele sabe e concorda senhor. – Disse olhando para o pai, como quem pedisse autorização.

Naquele momento eu preparava mais uma fornada e pedi que ele se aproximasse para explicar-lhe. Menino miúdo, olhos matreiros, esquelético, mas demonstrava interesse em aprender. Iniciou-se, no outro dia, o aprendizado e em menos de um mês o danadinho já sabia como preparar a massa, cortar, pesar, enrolar e distribuí-la na forma. Contudo, eu ainda não permitia que ele colocasse as formas no forno por serem muito pesadas. “Com o tempo você criará músculos, então poderá colocá-las e tirá-las com facilidade – dizia a ele”.

Em poucos meses o moleque já colocava as formas lotadas de pães para assar, tirava-as; enchia e arrastava o balaio para abastecer a vitrina. Acostumei-me a tê-lo todos os dias ajudando-me, com suas calças curtas, trabalhando como homem, cantarolando às vezes. Sua presença fazia-me esquecer de que, em breve, tornar-me-ia um ancião; sua calma e respeito com as pessoas, especialmente comigo, tornava-o especial, pois, ele dizia com certa frequência: “o senhor ensinou-me o ofício com tanta paciência que logo, logo aprendi; sou-lhe muito grato”. Tinha-o como filho.

Crescera o meu menino. Certo dia, numa sexta-feira de folga, ele apareceu com a primeira namoradinha para eu conhecê-la. Linda, lábios finos e sorriso fácil, cabelos negros como piche, de poucas palavras - talvez a idade contribuísse. Mas um homem cansado como eu que a vida toda fez pão, naquele porão empoeirado, sentia-me imune a gentilezas que pudessem agradar a uma donzela, como deveria. Eles se foram.

No outro dia, atarefados, ainda sobrara-nos tempo para uma prosa, embora os fregueses amontoassem enfileirados esperando pelo pão quentinho da manhã.

- Gostei muito da sua namorada. É muito bonita e educada. – Eu disse.

- Obrigado senhor Nhozinho.

Apressamos para que a freguesia fosse abastecida. Havia outra padaria a dois quarteirões, mas nosso pão era afamado. Todos o procuravam. Não fosse o Henrique eu já teria desanimado e, possivelmente fechado ou vendido o estabelecimento. Sentia-me cansado daquela lida diária; desde rapaz auxiliava meu pai naquele mesmo local, naquela mesma rotina.

Henrique preenchia-me a vida. Jamais quis que algo de mal lhe acontecesse. Tinha a minha confiança e o meu apreço. Os dias eram intermináveis quando eu não o via, por folgas ou férias. Era meu filho e filho gosta dos pais, salvo exceções; ele demonstrava imenso carinho por mim.

Certa manhã Henrique chegou cabisbaixo, parecia querer contar-me algo. Mas permaneceu calado, cuidando de seus afazeres, possivelmente ansioso para que eu perguntasse e ele pudesse desabafar. Não resisti e quebrei o silêncio.

- O que houve Henrique? Parece que o mundo desabou sobre sua cabeça? – Eu disse, enquanto ajeitava o forno para outra remessa.

- Prenderam meu pai, ontem, senhor Nhozinho.

Larguei o estava fazendo e pus-me à sua frente e pedi que repetisse. Não conseguia acreditar no que ouvira: “prenderam meu pai...”. O que podia ter feito aquele pobre homem que mal abria a boca; de casa para o trabalho e do trabalho para casa. Nunca ouvira nada que o desabonasse, tinham-lhe, todos, respeito e admiração por sua conduta.

- Meu pai foi acusado de molestar sexualmente a moça que queria a todo custo namorar o meu irmão. Este, no entanto, já havia dito a ela que namorava outra e, por isso, ela não o interessava. Ela, insatisfeita com a negativa, prometeu vingar-se de alguma forma: acusou, com firmeza e propósito endemoniado, meu pai de tê-la estuprado.

- Este mundo tá infestado de maldosos, filho! Não se entristeça. Haveremos de provar a inocência de seu pai, ainda que eu tenha que vender esta padaria.

Os meses se passavam e todas as teses defensivas apresentadas não conseguiram convencer ao conservador juiz daquela comarca; fora ele, então, condenado. Tornou-se um homem ferido e, no âmago de sua consciência, jurava inocência.

Henrique mudara completamente, não cantarolava mais, falava somente o necessário e muitas vezes, flagrei-o em choro compulsivo, pelos cantos daquele porão. Crescera, tornara-se homem, e agora havia uma chaga encravada no seu peito que sangrava dia e noite. Ludibriava seus pensamentos somente quando estava em companhia de Elisa, a namorada, por quem se derretia de amores.

Era outono, em breve o inverno. E o inverno naquela cidade doía nos ossos; velhos e crianças tinham que se agasalhar bem, senão passariam dias hospitalizados. Os mais velhos, experientes, sabiam o ano em que o inverno castigaria mais; chuvas tardias, climas, contribuíam. E previam que, naquele ano deviam todos preparar os casacos, pois, nos últimos dez anos não fizera tanto frio.

Deveras, acertaram o prognóstico: o frio chegou com força e liberdade, devastador. Na prisão, o pai de Henrique, aviltado, com poucos dias de inverno, contraíra uma pneumonia dupla. Hospitalizado, suportou apenas uma semana. Morreu ressentido por não convencer as autoridades de sua inocência. Henrique, depressivo, caminha de um lado para o outro, nos intervalos de uma fornada e outra, como se buscasse naquele gesto alguma explicação para toda perversidade praticada contra seu pai. A vida urgia e Henrique ainda tinha Elisa que lhe ouvia todos os clamores; aconselhava-o, confortava-o e, principalmente, amava-o. Pretendia tê-lo para sempre...

A primavera pedia licença florindo os campos, devolvendo às pessoas o ar de alegria que durante o inverso se dispersara, forçando-as a guardarem seus casacos. Na padaria não havia estação em que a freguesia comesse menos, portanto, o trabalho era o mesmo o ano todo; dias chuvosos e ensolarados. Henrique, contudo, parecia-me menos triste, mas evitava tocar no assunto. Cuidava de tarefas praticamente sozinho, poupando-me as forças que demonstravam declínio.

No início de dezembro, precisamente no dia seis, numa manhã chuvosa, Henrique não apareceu para o trabalho. Preocupou-me aquela atitude, pois, outrora quando precisava faltar por algum motivo, avisava ou mandava avisar-me. Com certa dificuldade e atraso abasteci a freguesia. No final da fila, um senhor bigodudo, baixo, olhos empapuçados, olhava-me ininterruptamente com quem quisesse perguntar-me algo. Aproximei-me dele e, antes que eu lhe dirigisse, ele falou:

- O que o seu empregado fez jamais combinou com ele: rapaz calado, trabalhador, de família equilibrada. - Falou-me com os olhos arregalados, amedrontados.

- Não sei do que o senhor está falando. Por favor, explique-me melhor.

– Pedi àquele senhor.

- Henrique decepou o pescoço daquela moça que foi o pivô da condenação de seu pai, ontem à noite. E não arredou pé do local até que a polícia o prendesse em flagrante delito. – Esclareceu-me, espantado como quem vira uma assombração.

Por um instante, bateu-me a sensação de perda, desolação. Eu não consegui responder àquele senhor. Abaixei a cabeça por uns segundos. Restabeleci, apressei o atendimento e fechei o estabelecimento; deixei um aviso na porta: luto. Saí perambulando, sem norte, entristecido por aquela cidade agora ainda mais enfumaçada. Desta vez, o mundo não parecia ter desabado sobre minha cabeça; desabou efetivamente. Era meu filho que havia cometido àquela atrocidade. O que eu poderia fazer para livrá-lo da penúria de uma prisão? Nada, absolutamente nada: crime bárbaro, flagrante delito...

Nunca mais voltei à padaria para trabalhar; vendi-a a um freguês que certa vez perguntara-me se eu tinha interesse em vendê-la. Aposentei-me para o trabalho, contudo, outras tarefas exigiam-me disponibilidade e forças.

Durante quatro anos, com passos lentos e incertos, visão diminuída, eu adentrei naquele presídio, empunhando uma sacola com pães caseiros quentes. Olhávamo-nos por longo período até sermos vencidos pelo choro. Henrique confidenciou-me na última visita, que eu era o único a visitá-lo; e que sentia muita falta de Elisa, de seu colo, seus beijos...

Hoje, ancião, acamado, afônico e com forças suficientes para abrir os olhos, eu imagino Henrique, meu filho, tendo como companhias tão somente a lua e o sol.