____________Quartinho de Costura


Desde pequena, ali pelo quartinho de costura, trocava as manhãs das bonecas pelo cismar com a mãe, dona Coralina, à máquina. Os olhos se encantavam pela costura impecavelmente reta sob a sapatilha da velha Singer tocada com os pés. Os ouvidos se perdiam na morosidade do plic plic plic da agulha no tecido, que lhe penetrava fundo, tocando algum cantinho mágico da alma. Sempre daquele jeito: os sentidos todos despertos a acompanharem a destreza das mãos maternas no manejo fácil das tesouras e fitas de medir.

Norma Célia decidiu, já naquele tempo, que iria costurar. Costurar a vida inteira para dar forma aos panos de flores da vizinhança, ao algodão rústico das roupas de serviço, aos enxovais dos recém-nascidos, e tudo o mais que lhe caísse nas mãos, que ali no quartinho de dona Coralina se fazia de um tudo. Era bonito, era bonito de se ver a pilha de panos subindo na parede, a mistura de tons dos muitos cortes com seus retrozes, colchetes e botões. Tinha coisa mais bonita que aquilo? O dia começava com a cantiga da máquina até o sol descambar por detrás da mangueira e os homens, o pai e os dois irmãos, irem chegando da lida nas roças... Sobre a cama de solteiro, as peças costuradas no dia, esperavam o povo para as provas... Norminha já sabia: ia sim, ser costureira!

A vida boa da roça teve seus aperreios. O pai adoeceu e faleceu logo em seguida de um mal do fígado. Largaram tudo, foram para a cidade, onde o recurso era mais fácil. A mudança feita pelo caminhãozinho de seu Tonico levou as poucas coisas para a casa alugada na Rua da Cadeia. Durante o trajeto, Norma Célia, atenta e zelosa, vigiava a Singer que era pra não correr risco de abalos ou danos. O irmão mais velho tinha feito o desmonte:  a cabeça ia numa caixeta de papelão, embrulhada nuns panos; a mesa de ferro batido, noutra ponta da carroceria, protegida por colchas de algodão. Dona Coralina tinha avisado: “Máquina é coisa melindrosa, qualquer pecinha que sai do lugar, olha o estrago”. A Singer era relíquia de família, herança de muitas gerações.

Com a mudança, as coisa pioraram num ponto, melhoraram noutro: passaram a comprar quase tudo, que o terreno da casa nova era pequeno, não dava pra plantar nada. Por outro lado, os irmãos se empregaram no comércio e o movimento de costura cresceu para dona Coralina. A fama logo se espalhou e a mulher já enjeitava encomendas. Botou Norminha pra ajudar. E nem sabia do que estava fazendo ao confiar às mãos da menina, suas agulhas e tesouras. Quando viu a queda que a filha tinha para os panos levou susto, louvou a Deus tamanha graça. O que começava ali no quartinho de costura da cidade era coisa pra se tirar o chapéu. Tanta facilidade da mãe, a filha botava no chinelo. As mãos abençoadas para o corte e a costura pareciam ter nascido prontas para o ofício.

O tempo passou, Dona Coralina ruim da vista, se aposentou. Passou a tutela do quartinho de costura para Norminha. O movimento cresceu, as pilhas de pano se amontoavam, e a moça varando noites a cortar, chulear, alinhavar, dando vida às formas desenhadas no papel de pão. Ao findar o expediente, era bonito de se ver a roupalhada enfileirada nos cabides, à espera das donas. E as donas agora eram da alta sociedade — todas cansadas de levar agulhadas dos figurinistas famosos da capital que as extorquiam nos preços exorbitantes e nem por isso as livraram dos constrangimentos das costuras frouxas e botões despencando.

A coisa pegou jeito, ganhou realce nas lonjuras da cidade: Norma Célia era o nome da costura elegante, bem feita e sem sobressaltos. Crescia a fama  da maga das agulhas, aumentava a fila de carros à porta para trazer, experimentar ou buscar vestidos. Sim, porque Norminha tinha se aprimorado, sem nunca ter feito curso, em vestidos para festas. Tudo lhe saía como que por encanto da cabeça privilegiada, a cada hora uma invenção, que só mais tarde, bem mais tarde, os estilistas de nome publicavam nas conceituadas revistas de moda.


Algumas clientes lhe diziam:”Norminha vamos investir! Abrir um ateliê num endereço chique!”. Mas ela nem sabia o que significava Ateliê. Queria mesmo era continuar no quartinho da mãe, na velha Singer com seu plic plic plic, os velhos pedais sob os pés — embora sempre lhe aflorasse aos lábios  um enigmático risinho de contentamento quando tinha notícias sobre as próprias criações. E se lhe contavam que uma mãe de noiva roubara a cena do casamento, num longo de renda saído de sua tesoura, se rejubilava atrás da maldisfarçada timidez e dizia modestamente: “Oh! Que coisa boa, gente!”. E era só.