BEIRANDO O RIO

Não há porteiras que prendam o tanto de coisas que carregamos dentro da gente. Os embrulhos dentro do peito, território dos nossos choros e alegrias, são nossas querências desconhecidas. Não se fogem destes lugares. Habitações eternas que segredam em nossas carnes o tempo das esperas. Constantes êxodos e imigrações em territórios distantes de nós mesmos que insistimos em lembrar em ermos sentimentos. Rachado por inquirir do tempo seus atrasos, em um nó de lembranças atado a beira do rio, Afonso Amaranto se perde em pensamentos ao descer do cavalo.

Escarceando belezas silvestres o baio parece reconhecer o caminho da bem aventurança. Remanso em uma relva tímida, testemunha com um olhar enternecido a peregrinação do seu domador. Cruzando as macegas, Afonso caminha em direção ao seu riacho litúrgico. A senda percorrida é adornada pelo despenar dos gansos. Delicadas graças que decoram o caminho que lhe permite o retorno. Seu passado é sempre sua chegada. Em uma cumplicidade que conjugava os seus abandonos: ele e o rio. Cobertos pelo arrebol que sinalava suas preces não atendidas, as cancelas das suas solicitudes se abriam, e desvelava-se a sacralidade das suas saudades: Uma mulher e um casal de pequenos.
 
As margens dignificam sua alma de esquecimentos. Esvai-se da memória os pequenos rostos que se iluminavam em seu casebre. O que fica é o retrato pintado no papel, reflexo que confirma: a promessa tem seus símbolos que se permite singrar o tempo. Símbolos transformados em religião, que fazem com que Afonso aguarde a volta como uma promessa divina.
Beirando o rio, os ciclos da lua contam o tempo certo da aliança. Ainda em tempo de piás, torenos entre os arvoredos, as bonecas de pano e o fiador no potro lhes antecipavam a vida em família. E o que era pueril passou a se tornar desejo de corpo, mediante os primeiros trançados dos cabelos de Maria Camélia, decorados com as flores colhidas repleta de expectativas. Afonso e Maria passaram a trocar o mel do camoatim por outros sabores. Foram tantas estrelas perdidas no encilhado daqueles buçais cheios de voltas! Alegrias que os levaram a prometer fidelidade eterna em votos maritais. O rancho ficou pequeno! Outros ciclos lunares sinalavam que o tempo tinha esperas para entregar: raiz e descendência no rincão. Enfeitando de amaranto e camélia os confins do Sul. 
 
E era beirando o rio que a vida se dava. No lavar das roupas, estradando com os rosilhos, na catequese congregacional, cambiando os sonhos com os poucos recursos do homem do campo. À noite, a vida parava e dormia conosco no carinho feito da chuva no telhado. A mata silenciosa, só nos permitia ouvir os quatro corações. E em beijo por beijo, a noite se esvaía. Fechava-se o portal do tempo neste fim de mundo.
 
O progresso que a tudo devora, aos poucos subsumiu meus sacramentais: tirou a poeira da estrada e o som do berrante. A televisão me tirou o romance cantado, a trova madrugueira. O progresso tirou a poesia dos potreiros. Tirou a nascente que jorrava dentro de mim. A universidade e o feminismo me levaram os bens mais preciosos, enchendo este rancho de solidão. O direito sagrado de ser pai me foi alienado por uma fêmea que passou a se achar autossuficiente. Enquanto meus projetos não passavam desta porteira, os de Camélia passaram a varar cidade afora.

Hoje, beirando o rio, existo como assessoria das minhas lembranças. Maria Camélia não se foi por completo. Ficou nas perguntas que sua ausência me elabora. Escrevo sobre as águas de outro rio, que embarga-me as retinas na busca de nascentes que me permeia de procuras. Sei da promessa deste arroio: o amor não morre nestas águas! Sereno sozinho. Eu, a viola e a saudade. E neste rancho a lua nunca mais apareceu e nem se ouviu mais os minuetos dos barreiros. As estrelas se fazem turvas, nos pirilampos que sinalizam sobre tapera a mística das faltas. Mas Deus há de descer sobre esta serra o amor que preciso. Tenho certeza que há segredos que voltarão canoa adentro. Registradas no campo ficam as vozes que me confessam. Que a cada hora, beirando o rio, faz ser saudade outra vez.