Ratos e homens

I

Pensativa, quieta, encostada a uma pilastra da varanda, Luciane, mirava os transeuntes que subiam e desciam a rua; uns apressados, outros contando os passos. Mas é certo que de tão distraída se lhe perguntasse a cor da roupa de algum transeunte, decerto, Luciane, não saberia responder. Mirava-os apenas – como se mira o horizonte, despretensiosamente. Escanchado na rede, Fontanni, bebericava um licor francês – presente de um amigo; deste mais adiante falaremos. Tratavam-no dr. Fontanni, por hábito; coisas de família. Assinava Eduardo de Silas Fontanni. Mimado na infância pela mãe; na adolescência – para alegria de todos – enveredou-se pelos estudos; formou-se em medicina aos 29 anos. Durante um seminário na faculdade de psicologia, no qual palestrou, Fontanni conheceu Luciane. O namoro durou três anos; casaram-se. Cerimônia simples proposta por Luciane que evitava badalações. Fontanni amava-a loucamente, mas à sua maneira; sem paparicos.

“Médico plantonista tem poucas folgas e as que surgem precisam ser aproveitadas ao máximo” – pensava Fontanni. Ao contrário, Luciane atendia em seu consultório de segunda a sexta-feira, de 08:00 h às 18:00 h. Mas os sábados eram reservados às coisas femininas: cabelos, unhas, shopping. Luciane, mulher de 36 anos causava inveja em muitas moçoilas. Morena, 1,68 m, olhos castanhos grandes, cabelos escuros, curtos, bem tratados; sorriso fácil, dentes bem cuidados sempre à mostra e com uma silhueta de interromper qualquer diálogo masculino. Era, ainda, profissional de primeiríssima linha; agenda cheia durante toda a semana.

Fontanni, aos 44 anos, não cometia muitos excessos, o que lhe proporcionava, assim como Luciane, exibir um corpo atlético e uma ótima aparência. Enquanto Luciane, aos sábados, na parte da manhã, recorria aos caprichos femininos, Fontanni, de folga, recorria sempre aos seus livros da época da faculdade e aos que adquiria espontaneamente. Mantinha uma biblioteca bem montada no sótão daquela casa herdada do pai. Podia a qualquer momento adquirir outra casa, mas, ali, ele e Luciane, estavam satisfeitos; adoravam o local. Viviam muito bem.

II

Há 6 anos, Fontanni cismou – contrariando insistentes pedidos de Luciane – em trocar a medicina pela política. Elegeu-se prefeito sem grandes esforços. Detestou a experiência e no terceiro ano quase renunciou ao cargo. Conseguiu, com ajuda de alguns interesseiros, a findar o mandato e entregar a faixa ao sucessor. Durante o mandato fora privado de seus prazeres: a devida atenção à esposa, seus livros, a medicina...

A biblioteca era pouco visitada desde quando cometera tal equívoco, afinal, como dissera Luciane à época: “você é médico e sabe tão somente clinicar”. Houve, então, na biblioteca, uma invasão de camundongos; uma colônia de roedores que veio gradativamente exterminando todos os livros. Nenhum veneno conseguiu eliminar os malfeitores; aparecia algum morto, em seguida, outro vivinho, olhos arregalados, passeando como se apossasse do local. Fontanni tinha pavor daqueles animais. A criada, além de abastecer com venenos os pontos estratégicos, dava vassourada por toda parte. Tudo em vão.

Hoje, contudo, sente-se mais feliz. Formado em medicina, sua incumbência é curar doentes, nada mais. E o faz com rigor e competência profissionais. No hospital tem o respeito e a admiração de todos – colegas e pacientes.

Ergueu-se um pouco a cabeça da rede e olhou demoradamente para Luciane que ainda vagava-se por entre pensamentos. Por um instante, sentiu pena em ter que interromper aqueles devaneios, mas precisava:

- Luciane, querida, por seus exercícios psíquicos desaprovou o meu ingresso, à época, na política. Acertou no alvo.

Luciane desencosta da pilastra e num gesto de mulher delicada, olhar charmoso e educação lapidada, responde-lhe:

- Conheço o comportamento psíquico de cada um, querido! Afinal sou estudiosa da psicologia. Sempre cri que você como político seria uma decepção. Mas por sorte acabou; houve a autoconsciência. Não fora preciso eu insistir tanto para você notar o grande erro e, claro, não permanecer nele.

Fontanni levantou-se da rede, olhou firmemente nos olhos de Luciane, beijou-lhe os lábios e convidou-a para entrarem. Tomaram a última dose de licor na cama. Extasiaram-se de puro prazer até às 08:00 h. Tinham o compromisso de jantar com o amigo Hélio Campanelli. Vestiram-se e foram.

III

A noite estava muito agradável; clima de primavera. Muita gente andando por toda parte da cidade, com roupas coloridas. Dia ideal para sair e se divertir. Luciane adorava quando Fontanni tinha os finais de semanas livres e a convidava para sair. Entraram no restaurante onde Hélio já os aguardava.

- Olá Hélio! – Dirigiu-se Fontanni, esboçando um sorriso amável.

- Olá caros amigos. Há quanto tempo não nos encontrávamos. Já sentia saudades, mas a rotina não nos poupa. – Falava Hélio enquanto arrastava a cadeira para Luciane se assentar.

Assentaram-se. O garçom imediatamente dirigiu-se para atendê-los. Fontanni, como já havia tomado licor pediu água mineral, acompanhado por Luciane. Hélio pediu um uísque com bastante gelo. Conversaram sobre todos os assuntos que um encontro dessa natureza permite. Ao final, Fontanni:

- Você se lembra da minha biblioteca, Hélio?

- Sim, claro, Fontanni! Como eu poderia esquecê-la; organizada, farta de livros, invejável. Mas o que houve?

- Desde quando iniciei aquele mandato de prefeito, não a visitei mais. Há ratos por toda parte, nojentos. Já usei todos os venenos que me ensinaram. Morre um, surgem quatro. Uma infestação. Estão devorando meus livros que eu tanto aprecio.

- Providenciarei alguma coisa que será infalível. Disso eu entendo! – esnobou-se Hélio, tentando mostrar-lhe que fizera farmácia e tornara-se eficiente farmacêutico.

- Por favor, Hélio, faça isso. Elimine-os para mim, antes que eles me enlouqueçam. Tenho aversão a esses animais.

Hélio assentiu com a cabeça. Jantaram, entremeando uma boa conversa. Hélio, logo após, seguiu para casa, mas o casal permaneceu ainda algum tempo, apreciando a noite.

- Notei os galanteios que Hélio dirigiu a você, Luciane! – Fontanni olhava-a com certa raiva.

- Fontanni, querido! Sou uma profissional independente e não necessito estar com ninguém, pensando no futuro. Ganho o suficiente para manter-me e até adquirir algum patrimônio. Estou com você porque quero; poderia estar com outro, naturalmente. E saiba mais, sua insinuação foi demasiada petulante. Espero sinceramente que você se retrate.

- Perdão, Luciane! Realmente extrapolei. A imaginação às vezes leva-nos a cometer equívocos. Não falaremos mais disso.

IV

Na semana seguinte, Hélio ligou e anunciou que havia desenvolvido uma fórmula que seria o fim dos ratos. A biblioteca estaria em breve imune aos malditos roedores. Apenas uma gota do líquido seria suficiente para abater um cavalo em poucos minutos. Portanto, altamente tóxico; nocivo à vida humana. Por esta razão, fazia questão de aplicar a primeira dose e explicar-lhes como manusear para uma segunda aplicação (reforço), sem riscos.

Dois dias após, Hélio chega à casa empunhando um pequeno frasco. Foi à biblioteca – observado por Fontanni e Luciane de soslaio – calçou luvas, cobriu nariz e boca e em fatias de pão pingou três gotas em cada, e as colocou em pontos estratégicos da biblioteca. Findo o trabalho, tirou as luvas, descobriu nariz e boca, lavou-se com bastante sabão e água corrente. Entregou o frasco a Fontanni, explicou o quão tóxico era o líquido daquele frasco, e pediu-lhe que o mantivesse em local inacessível às pessoas desavisadas. Luciane, cortesmente, convidou-o a sentar-se à mesa com eles para o jantar. Antes, porém, serviu-lhe do licor que ele havia enviado a Fontanni.

Após o jantar, Hélio, receoso de que a fórmula pudesse, numa eventualidade, ser usada de forma contrária aos seus ensinamentos, propôs retornar na semana vindoura para aplicar a dose de reforço. Talvez nem fosse necessária, mas para demonstrar a Fontanni que todos os roedores do entorno, que ousaram provar da fatia de pão, não deram sequer um passo – a maioria teria morte instantânea, caindo do lado.

V

Chovia torrencialmente. Fontanni iniciaria o seu plantão, naquela sexta-feira, às 07:30 h. Levantou às 06:00 h, tomou banho e acompanhou Luciane no café, preparado pela criada que chegava bem cedo nos dias de plantão de dr. Fontanni.

Luciane rumou-se para o seu consultório e Fontanni ao hospital. Este sabia que teria serviços o dia todo, à noite: partos, acidentes. Já estava habituado; desempenhava todas as tarefas; sentia-se orgulhoso em diagnosticar, tratar e depois ver a pessoa bem, curada.

Chegou, cumpriu as rotinas burocráticas e pôs-se a visitar os pacientes. Pegava a prancheta, preenchida pelo antecessor, lia, interpretava e dava continuidade, ou às vezes trocava a medicação. Até o meio-dia teria terminado as visitas – excetuando-se algumas interrupções para atendimentos emergenciais.

Embora Fontanni não tocasse mais no assunto com Luciane, lhe incomodavam os galanteios de Hélio. Talvez fossem apenas parte de sua educação recebida de pais e escolas, rígidos. Mas não conseguia esquecer. Hélio ligava com alguma frequência para ambos; quando falava com Luciane, logo após, falava também com Fontanni. “Estratégia dele ou apenas fruto de minha imaginação infértil – pensava”.

À tardinha, quando Luciane deixava o consultório, Hélio liga e se convida a jantar em sua casa naquela noite. Luciane não teve alternativa senão concordar, embora esclarecendo de que naquela noite Fontanni estaria de plantão.

Luciane ligou para a criada para que preparasse o jantar e, em seguida, para Fontanni, que não a atendeu por estar em atendimento emergencial. Pouco tempo depois, Fontanni retornou a ligação:

- Olá Luciane! Já está em casa, querida?

- Não, fontanni, passei no supermercado para comprar um vinho. Hélio se convidou a jantar lá em casa hoje, mesmo eu dizendo-lhe que você estaria de plantão. A propósito, ao invés de você ir a algum restaurante para jantar, talvez lhe fosse possível vir jantar conosco.

- Adoraria sim, Luciane! Mas hoje é sexta-feira e as ocorrências são inúmeras. Médico em hospital de interior é pau pra toda obra. Creia, se me for oportuno irei.

Fontanni desligou o telefone, pressionou a fronte, sentiu a cabeça dilatada. Certamente o cansaço contribuía para que se sentisse assim. O dia tinha sido pesado. Embora confiasse demasiado em Luciane e mantivesse sólida amizade com Hélio, lhe incomodavam os galanteios deste. Contudo, preferia admitir que fossem frutos de sua imaginação.

VI

Choveu durante toda a noite. Fontanni preparava-se para tomar a primeira refeição quando o rapaz da portaria, a passos largos, dirigiu-se a ele e disse-lhe:

- Dr. Fontanni há um rapaz querendo falar com o senhor, disse que é seu amigo e o caso é urgente.

Fontanni afastou a xícara, olhou para o rapaz, levantou-se e foi até à portaria.

- Inspetor Chagas o que o traz aqui? Perguntou Fontanni olhando pela abertura do vidro que protegia a portaria.

- Uma desgraça, dr., uma desgraça!

- Diga-me logo, Chagas! O que houve?

- A sua criada encontrou pela manhã, debruçados sobre os pratos, sua esposa e um rapaz. À frente deles um frasco com um líquido incolor, possivelmente tóxico, o qual, já foi enviado para exame laboratorial. A perícia trabalha, por enquanto, com a hipótese de ingestão de substância tóxica.

Fontanni levou a mão ao queixo, apertou-o, com o olhar fixo em Chagas. Abriu a porta, em silêncio, foi à garagem pegou o carro e saiu...