O último olhar

I

- Mais uma vez sinto que serei hostilizado!

- Mas por que essa ânsia se você é o funcionário mais antigo da empresa?

- Meu passado, querido amigo Ângelo, é para ser esquecido e enterrado.

- Mas Jair, você é tão compenetrado no trabalho, dedicado ao extremo, homem de confiança da administração. Custo a crer que outrora você tenha sido diferente.

- Então creia Ângelo: fui irresponsável durante muitos anos, deixei de enxergar a vida e me entreguei à bebedeira e à jogatina. Trabalho, esposa e filhos foram postos em segundo plano. Não fosse a bondade do senhor Miguel, eu não estaria aqui sentado, aguardando-o para abertura das comemorações do vigésimo aniversário dessa empresa. Iniciamos juntos; muito trabalho, recurso financeiro escasso, mas muito sonho. De sócio, passei a funcionário. Vendi todo o meu patrimônio. É uma longa história...

É anunciada a chegada do senhor Miguel. Idoso. Com voz arrastada e fraca inicia o seu discurso. Como em outros aniversários, senhor Miguel discorreu sobre a história da empresa, as dificuldades enfrentadas, sua perseverança e as pessoas que o ajudaram, especialmente o remanescente: Jair – um exemplo de superação.

E para finalizar o discurso, senhor Miguel demonstrando alegria, promoveu Jair a Gerente Geral, ao lado dos filhos, administradores. Levantou-se e pediu novamente a palavra para frisar:

- Jair, durante esses vinte anos, você foi fiel a mim e a esta empresa – excetuando-se algumas coisinhas resolvíveis, as quais você com hombridade e fé, superou-as. Não tenho muito tempo mais nesta terra, mas asseguro que você auxiliará aos meus filhos, orientando-os sempre. Obrigado a todos os funcionários desta empresa pela cooperação. Ela é o resultado do trabalho conjunto. Finalizou.

Os garçons começaram a circular; bandejas em punho: salgados, cervejas, refrigerantes... Avancei, ao contrário de outrora, em uma taça de refrigerante. Fui bebericando e pensando na minha segunda chance, precisava abraçá-la. Afinal, Beth – como eu chamava Elisabeth, minha esposa – merecia uma vidinha melhor; eu, reparar minhas falhas, juntar os cacos.

Fartei-me de salgados e refrigerantes. O ambiente estava agradável. Os beberrões assentados, copos em punho, risos e piadas. Procurei por Ângelo, pois não o via há bem tempo. Olhei em volta e o avistei do outro lado. Fiz-lhe sinal para que se aproximasse. Estava me sentindo sozinho demais, mas não sentia vontade de ir embora. Não podia fazer desfeita ao senhor Miguel, que mesmo ao longe, acenava-me.

- Que bom que você veio Ângelo. O ambiente está bom, mas todos aqui estão bebericando, exceto eu e você. Por comungarmos da abstinência de álcool, acho que devemos ficar juntos.

- Sim, Jair! Mesmo nos relacionando bem com todos, por não bebermos, sentimo-nos distantes, mesmo rodeados, como estamos. Ficarei aqui com você.

Assentou-se, o garçom ofereceu-lhe salgados. Dispensou-os, estava satisfeito.

- Ficou feliz com a sua nomeação, Jair? Indagou Ângelo.

- Estou radiante, Ângelo. Precisava disso para tentar afastar o meu passado de vez, propiciar melhorias para a minha família, principalmente a Beth que trabalhou a vida toda, noite e dia. Professora em duas escolas, não tinha tempo para comer às vezes. Construiu a casa em que moramos com o seu trabalho; eu, apenas passava, gastava, embebedava, jogava, perdia... Tratei-a com desdém. Mas ela propôs uma casa para acomodar os nossos filhos; encarou a empreitada e a ergueu. Não havia nada que parasse Beth - serena e determinada, sempre.

Calei-me para acudir a uma forte pressão no meu peito. Doeu muito em seguida. Comecei a suar frio. Ângelo olhou-me espantado:

- Está se sentindo mal, Jair?

- Sinto umas coisinhas que passarão logo, logo! Respondi entre os dentes.

Minutos depois, senti-me tonto e não me controlei: cai da cadeira. Não me lembro de coisa alguma.

II

Acordei num lugar em que jurei ser um hospital. E era. Não havia ninguém mais a minha volta. Levantei-me, parei, olhei por todo o cômodo – escuro e frio. Não sentia mais nenhuma dor, apenas um vazio, solidão. Esperei um pouco para confirmar se eu estava mesmo sozinho. No final do corredor vi uma enfermeira com a tabuleta sobre o peito passando de um lado para o outro. Gritei-a. Não obtive resposta. Talvez a distância possa ter abafado minha voz e ela não ter me ouvido. Caminhei em direção para onde a vi. Olhei em um quarto onde me pareceu vê-la entrando. Não a vi mais. Continuei caminhando. A recepção estava próxima. Uma mulher alta e bonita, compenetrada, com os olhos grudados no monitor, sequer erguia-os. Aproximei-me dela:

- Olá! Boa noite! Disse com firmeza.

Ignorou-me. Parecia interessadíssima no que via no monitor. Bati levemente no balcão por duas vezes, nada. Apavorei.

- O que está acontecendo? Por que estou sendo ignorado desse jeito? Não estou entendendo nada, nada. Primeiro a enfermeira no corredor, agora...

Esperei mais alguns minutos e ela não me olhou. Estava extasiada, esboçando um leve sorriso. Devia estar acessando estes sites de bate papo, pois vez ou outra tocava o teclado apressada, digitava alguma coisa e voltava-se para o monitor. Enraivecido com o desprezo, virei às costas e saí. Logo a minha frente um táxi parou, desceu uma senhora se contorcendo em dores, amparada por um homem magro – o marido, talvez. Certamente daria luz em poucos minutos a uma vidinha nova. Olhei-os, mas não me olharam. Não podiam se dar ao luxo de cumprimentar-me, entendi. O momento era de correria, qualquer minuto era precioso para aquele casal.

Ganhei a rua. Sentia-me muito bem. Nenhuma dor, nem pressão no peito. Passei o dorso da mão na testa, não transpirava. Devo ter sentido uma queda de pressão arterial; havia voltado ao normal. Podia até voltar para a festa na empresa. Mas preferi caminhar um pouco, aproveitando o ar que soprava lentamente meu rosto e vendo as pessoas que caminhavam naquela sexta-feira. Homens, mulheres e crianças sorridentes cruzavam-se comigo. Como cada uma delas cuidava de sua vida, seu prazer; também não me incomodou o fato de elas não me olharem.

Entrei em bares onde passei horas bebendo e jogando com amigos, durante anos. Olhava apenas, não queria falar com ninguém, mesmo os conhecidos que continuavam na mesma empreitada. Não os invejava. A bebida não me proporcionava mais nenhuma satisfação, não a queria mais. Entretanto, não podia esquecer que como gerente precisava aproveitar ao máximo a oportunidade - a queria muito. E tinha em mente outros propósitos: reaproximar-me da família, e desta vez pra valer, com dignidade.

- Olá! Eu disse a um senhor que entrava no bar, sorridente por avistar uma pessoa no canto esquerdo.

- É possível que ele não me tenha ouvido – eu disse para mim mesmo. Música, conversas espalhadas, tinir de garrafas. Não, ele não podia me ouvir.

Dei mais uma olhada como quem se despede em silêncio e voltei à rua. Entrei em ruas que há muito não passava – primeiro, a bebedeira não deixava que eu explorasse outras coisas; segundo, o horário de trabalho não permitia. Com isso, àquela hora me era permitido observar a tudo que estivesse a minha frente. E o fazia com satisfação.

- Há quanto tempo não fazia um passeio tão apreciável – pensei. Aproveitarei tudo a que tiver direito.

Veio-me à memória Ângelo. Onde estaria? Já teria ido embora? Ou arrumou algum papo na festa que lhe tenha agradado? Não me importava aquilo naquele momento. Devia pensar noutras e observar melhor o que deixara de contemplar.

Uma criança veio em minha direção, brincando com o pai, que vinha logo atrás. Desviei para o lado para ela não bater em mim. Senti inveja daquele pai. Nunca me sobrou tempo para que meus filhos pudessem correr a minha frente, ou atrás, ou do lado. Eu não lhes proporcionei isso. Preferiam a mãe, sempre. Fui um verme, é fato.

Cheguei a uma pracinha toda iluminada; idosos sentados, outros jogando cartas, outros dama, outros em pé conversando. Todos me pareciam felizes. Procurei por um assento vazio. Não havia. Continuei observando aquela gente preocupada com o momento. De repente uma senhora e duas crianças levantaram-se desocupando o banco. Não hesitei: ocupei-o logo.

Algum tempo depois, as pessoas começavam a rarear na praça. Os idosos guardavam seus tabuleiros. Mães recolhiam os seus filhos. Horário para recolher. Amanhã será outro dia e muitos retornarão às mesmas rotinas naquela pracinha, conclui. Com a dispersão, levantei-me, olhei o relógio e já passava das 23:00 horas. Há anos que eu não zanzava até àquelas horas. Precisava voltar para casa. Estava distante, afinal agia como um andarilho naquela noite.

No caminho para minha casa, parei algumas vezes para refletir o quanto eu havia perdido.

- Não tenho que ficar remoendo o passado, preciso traçar um futuro decentemente possível. – pensei, enquanto olhava os retardatários, como eu, rumando-se para suas casas. Alguns ocupavam toda a calçada – de um para o outro.

Já me sentia ansioso para chegar a minha casa. Havia esgotado as minhas forças e o cansaço me rondava. Minhas pernas não queriam mais caminhar. Foram horas intensas de andanças e elas já não eram mais jovens. Sentei-me no meio-fio para recuperar as forças. Voltaram-me os pensamentos:

- Beth deve estar louca de preocupação. Ela sabe que não me meto mais em bebedeiras, jogatinas, mas um acidente... Bobagem minha pensar em acidente. Festa na empresa, conversas animadas. Minha provável queda de pressão arterial deve ter sido pela emoção que senti ao ser nomeado gerente, nada mais. Sinto-me agora apenas cansado, nenhuma dor, nenhum outro incômodo...

Descansado, pus-me novamente a caminhar. Observei menos o que via a minha frente. Queria chegar o mais rápido possível. Assustei com o horário: 06:15 horas. Já estava bem próximo de casa, a alguns quarteirões. Alguns trabalhadores cruzavam-se comigo e sequer diziam:

- bom dia! Talvez o fato de eles trabalharem aos sábados os aborrecesse.

- Bom dia! – dirigi-me cordialmente a um senhor que levava o seu cão para passear. Não me respondeu, parecia emburrado.

Intrigava-me aqueles comportamentos. Nenhuma pessoa dirigiu palavra a mim? O que estaria havendo comigo, ou com elas? Responder bom dia não custa nada, não dói; são apenas duas palavras curtinhas.

- Vou dar uma de louco, pensei.

Ao surgimento de duas senhoras com trajes de ginástica pus-me a dançar na frente delas, de um lado a outro da calçada. Passaram sem me notar ou fingiram. Convicto de que alguma coisa estava errada, não cumprimentei mais ninguém que encontrei pelo caminho. Minha casa estava a pouca distância.

- Ufa! Estou quase, posso me preparar para as indagações de Beth, pensei. Afinal, nem nas épocas mais árduas de minha vida extrapolei tanto...

Havia muitas pessoas em minha casa àquela hora, o sol já raiava alto. Homens e mulheres, postados. Até pessoas chorando havia, e dentre elas, Ângelo, meu amigo. Próximo ao portão, parei, olhei e percebi que as pessoas saiam enfileiradas, cabisbaixas. Esperei e de repente, uma urna. Estremeci. Gelei dos pés a cabeça. Urna só serve para transportar pessoas mortas – pensei, com os olhos lúgubres a saltar das órbitas.

Não quis entrar em minha casa, recuei. Sentei-me na porta da garagem, firmei os cotovelos nas coxas, amparei o rosto com as mãos e deixei que as lágrimas brotassem...