Cheiro de morte
Todo o ambiente cheirava a morte. O infortúnio abeirava. O quintal, o varandão; até a cozinha exalava um odor horripilante de defunto. Mas justamente ali onde reinou a paz e a concórdia, visíveis, durante tantos anos? Naquele lar era quase impossível uma ocorrência daquela natureza. O patriarca, homem singelo, trabalhador, digno e honrado. Lavrava a dura terra todos os anos e com o suor mantinha a despensa abarrotada. Contudo, desviar-se daquele cheiro; ludibriar o olfato, enxergar normalidade naquele ambiente aparentemente hostil estava fora de propósito.
Lurdes, a matriarca, por várias vezes fora acudida, após engolir medicamentos em quantidades nocivas, conforme relatos do vigilante marido. Recuperada, retornava ao lar, repudiando médicos, remédios, desintoxicação, pacientes, tudo. Jurava nunca mais cometer tal atrocidade. “ A vida vale muito pra ser jogada fora – bradava ”.
A polícia vasculhava cada canto da residência buscando pistas sobre o sumiço de Lurdes, sob o olhar vago e inexpressivo do marido. Embora houvesse um bilhete escrito por Lurdes com grafia tremida e quase ilegível, deixado sobre o lavabo, os peritos não descartavam a possibilidade de um assassinato. Intrigado, o delegado, responsável pelo inquérito acompanhava os trabalhos periciais, aturdido.
Passou-se uma semana e nenhuma pista na residência, tampouco nas buscas externas. Virgílio, o marido - ou viúvo -, mantinha esperanças de que Lurdes fosse encontrada viva. “Não lhe faltava nada, amor, fartura – justificava-se choroso.” As noites estavam cada vez mais tristes e frias; o cheiro de morte ainda rondava os narizes, mas nenhum defunto.
- Senhores, vamos abandonar este local e aprofundarmos nas buscas externas. Já cavoucamos várias partes do terreno e não obtivemos nenhum vestígio. É possível que senhora Lurdes esteja andando, sem destino, vagando feita uma louca, mundo afora. Ouçam o que diz o bilhete:
“Virgílio, querido, cuide das nossas filhas; encaminhe-as bem na vida e sejam todos vocês felizes. Eu desgostei de tudo, vou seguir o que minha cabeça manda: andar, andar e nunca mais voltar. Nunca mais. Lurdes.”– Leu o delegado, encabulado e com certa dificuldade.
- Sim senhor. – Responderam os comandados, uníssonos.
Virgílio continuou a lida com a dura terra, embora demonstrasse aparente constrangimento pelo feito da esposa. O mistério, a saudade. Todavia, a vida precisava continuar; as crianças, o sustento. Lurdes precisava ser esquecida por todos, para sempre. O delegado, após insistentes buscas, concluiu o inquérito: – sumiço. Obviamente que ainda manteria em seu banco de dados a fotografia, pois Lurdes podia ser vista nalgum lugar a qualquer hora. Foi sumiço, estava consumado.
Mesmo frente à desgraça, Virgílio voltou a alegrar-se – parcial, notoriamente. Ia aos bares na cidade próxima, falava com animosidade com os amigos: “Estou só, amigos. Mas não tão só. Não estou... – frisava Virgílio movido pelo abuso etílico”.
Numa noite, após várias goladas, Virgílio voltou para casa. E, no ímpeto, com uma lanterna em punho foi ao paiol. Cuidadosamente, afastou as espigas de milho, levantou as tábuas que assoalham o ambiente e lá no fundo, em cova rasa, repousa Lurdes, com os lábios arroxeados de frio, fisionomia sombria, mas ainda linda, como sempre. Virgílio fixou o olhar naquele rosto por muito tempo e carregado de emoção, dirigiu-lhe:
- Querida, eu não queria ver você assim, inerte, calada, sem reação, sem ao menos lançar-me um olhar. Eu não queria isso, juro. Sempre quis você do meu lado! Portanto, não tenha medo, continuará aqui guardadinha, para sempre. Ninguém a atormentará. Fique em paz. Sempre que puder virei vê-la.