Goles na noite fria

“Quero cantar só para as pessoas fracas

Que tão no mundo e perderam a viagem”.

Cazuza.

Uma hora e dez cervejas depois o retiraram da festa. Onde já se viu causar tumulto em baile beneficente? Não tinha cadeira cativa e perambulava pelo salão conduzindo álcool dentro e fora de si.

-Você leva o meu carro?

-A hã! Tem um ponto de ônibus aí em frente.

Para lá foi com duas garrafas nos bolsos e pensamentos confusos. Que fizera? Alguns desaforos para o padre, licenciosas palavras para a freira? Algumas piscadelas para solitárias senhoras casadas? Certamente vomitara no salão.

-Senhor, por que bebe tanto?

-Para que você viva muito.

No ponto de ônibus, a solidão e o mendigo. Este descobriu o rosto e estendeu a mão. Dedos velhos e encarquilhados levantavam em forma de súplica:

-Um trocado para um pobre diabo.

-E um diabo rico ganha o que em troca?

Não teve resposta a não ser o vento frio e cortante no rosto. Enquanto tomava da pequena garrafa, o mendigo se debatia tentando levantar. Pior pra ele, pensou. Mesmo bêbado derrubo esse daí com um sopro alcoólico.

-Cê me dá um gole?

-Um pra você e outro pra Jesus!

Quando o homem desgrudou a gengiva da garrafa, ele a arremessou contra as velhas escadarias da igreja. Teve pensamentos furiosos contra os fiéis que lá estavam. Arrotava revoltas:

-Então, não se pode beber e ser feliz?

-Si tivé dinheiro, si pódi bebê...

Ficaram nas extremidades do banco a um braço de distância cada. Do salão de festas chegava o frouxo som da orquestra. O glub glub de suas gargantas não abafava o áspero barulho do tráfego.

-Naum tem nojo di minha boca?

-Tenho mais é medo.

De tempos em tempos cuspiam na sarjeta. Olhavam-se furtivamente. As luzes amareladas dos postes brincavam com suas silhuetas, dando-lhes contornos fraternos. Assemelhavam-se a velhos companheiros no entreato de uma guerra.

-Vamos ver quem cospe mais longe?

-Si eu perdê eu perdo o que?

O trânsito escasseava. Os dois, estreitando camaradagem, iam atravessando os minutos que os separavam. Ambos miravam a praça, o cruzeiro, o prédio.

-O sinhô vem sempre aqui?

-Não tanto quanto você.

Começaram a segunda garrafa que saltava de uma mão para a outra como pulgas em cães sarnentos. A boca sem dentes do mendigo tinha o riso solto dos descontraídos; a outra possuía o sarcástico sorriso da distância. Olhos bailarinos avistaram o ônibus que se aproximava.

-Patrão, deixa a garrafa comigo!

-Ela é quase toda sua.

Pisou no primeiro degrau acenando adeus. O motorista o encarou desconfiado. Enquanto pagava o passe viu que o mendigo guardou a garrafa. Assim que passou a catraca e cambaleou pelo corredor avistou-o, do outro lado, na escadaria da igreja. Parecia estar lambendo os degraus.

make
Enviado por make em 14/01/2018
Código do texto: T6225536
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