A volta do filho da mãe

“A maioria dos homens vive uma existência de tranquilo desespero”.

Henry Thoreau

Vozes ecoam na cabeça de Toni. Algumas falam mansinho, outras murmuram rispidamente. De uns anos para cá, devido a sua habitual solidão, elas o têm entretido durante muito tempo. Nem o aumento da dosagem dos remédios conseguiu silenciá-las. Sendo assim, Toni optou por ouvi-las em vez de tentar abafá-las com narcóticos mais poderosos. Um bem-te-vi que passou voando e cantando, parecia dizer:

-Vamos pra casa, menino!

-Onde é nossa casa, pássaro atrevido?

Sentou-se á beira da estrada, pois estava cansado de esperar por uma carona que não vinha. Uma voz sussurrava em seu ouvido que essa atitude poria em risco a sua vida; outra voz dizia que isso era o mais certo a fazer já que estava cansado. A vontade dele nem era mais chegar a casa, nem era ficar onde estava. Já não sabia se possuía uma vontade. Ali, deitado há cinco metros da pista, sentia uma enorme sonolência. Na memória, sua mãe reinava:

-Você promete que não vai mais se drogar?

-Prometo, mãe...

A mãe de Toni não era ingênua a ponto de acreditar nele, mas era mãe a ponto de querer acreditar apesar da descrença. Seu sistema de valores incluía a esperança e a felicidade. Esperava a cura e imaginava a felicidade. Arriscava prodígios:

-Você vai ser muito feliz ainda, meu filho!

-É o que a senhora acha ou o que a senhora quer?

Acordou com o som estridente de uma buzina. Deu um pulo rápido e ficou de pé. A caminhonete seguiu pela pista até desaparecer ao longe. Toni, com o coração acelerado, retirou um cigarro do bolso da camisa e ficou fumando. Percebeu que as vozes haviam silenciado. Bem, talvez elas não gostem de adrenalina, pensou. Enquanto olhava à distância, distraído, um caminhoneiro tão perdido quanto ele, estacionou o caminhão um pouco à frente para pedir informação.

-Ô cara, como faço para chegar a Mato Alto?

-Dá uma carona que te ensino.

Enquanto o caminhão avançava rapidamente, Toni ia recordando a paisagem que há algum tempo havia deixado para trás. Há exatamente três anos tinha ido embora e nesse mesmo dia jurou para si que nunca mais voltaria. Recentemente descobriu que não se pode jurar, pois não consegue cumprir um juramento. Isso ele descobriu sozinho sem o auxílio das vozes. Descobriu também que quanto mais se deseja alguma coisa, mais frustrado fica quando não a alcança e com o passar do tempo fica frustrado mesmo quando a alcança.

-Você sabe que ainda não está curado.

-E sei que nunca vou estar.

Do psiquiatra só precisava que assinasse o laudo. Quando ele relutou, disse que não tinha mais dinheiro para outras sessões, mas tinha juntado uma boa quantia para uma sessão definitiva e com laudo. O psiquiatra estampou um sorriso conivente. Por trás dos óculos, arriscou seriedade:

-Vai tomar juízo, Antônio?

-Aos goles?

Complicado demais, era assim que sua mãe o classificava. Ela não queria que ele tivesse ido embora, mas também não desejava que tivesse ficado da maneira como estava. Um jovem sem planos, sem sonhos de futuro e ainda por cima viciado em drogas. Pensando bem, era melhor que partisse mesmo. Hoje, de volta, livre das drogas, mas ainda sem planos para o futuro e com uma apatia crônica, Toni lança um olhar de cansaço sobre sua cidade natal.

-Aqui estamos!

-Obrigado pela carona.

Assim que pisa o asfalto, todas as vozes disparam em sua mente. Uma enxurrada delas. Veem de todas as direções: das pessoas que encontra na rua, do carteiro, do padre, do lojista, dos idosos na pracinha. Até da própria mãe que, nesse momento, queima o arroz na cozinha. Detém-se, mudo, diante do portão. Fareja o ar, passa a manga da camisa no rosto e filosofa sozinho:

-O que é pior que voltar?

-É nunca ter ido...

Descansa a mala no chão e lança um olhar de reconhecimento que abrange a minúscula cidade. O que vê quando olha para ela é apenas um reflexo dele próprio. Parece que sua incipiente simpatia se espalha como as ondas sobre a areia da praia, a princípio rápida, forte e a seguir calma e abrangente ocupando todos os espaços. Antes de entrar em casa, imaginou ter ouvido os soluços das supostas vozes sendo afogadas no seu recente mar de contentamento. Assim que viu a mãe e a abraçou certificou-se de que quem soluçava eram eles...

make
Enviado por make em 08/01/2018
Reeditado em 26/07/2019
Código do texto: T6220204
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