SE  DEIXA  LEVAR


 

Felícia é uma jovem senhora que sempre morou com os pais numa pequena casa ao lado da igreja. Pacientemente ela reza todos os dias enquanto espera a chegada de um grande amor que não precisa ser exatamente como ela quer. Se for pelo menos metade daquilo com que sonhou, tá de bom tamanha.
Antes do sol nascer, Felícia já está em pé. Seu ritual matinal é simples e breve: café bem adoçado e torradas com cream cheese enquanto dá uma olhada no jornal do dia anterior. Logo está a caminho do trabalho para mais um dia das mesmices, mas mesmo assim ainda encontra um pouco de ânimo para aturar mais um dia. Felícia vê o mundo passar nos dias de sol ou de chuva enquanto o ônibus faz o caminho de sempre. Pena ela nunca enxerga as cores, nem aquele olhar em sua direção.  



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Um dia, voltando para casa, Felícia cochilou no transporte coletivo e foi parar no ponto final. Meio sem graça se dirige ao motorista e pergunta quando sai o próximo ônibus. 
"Daqui uma hora moça."
"Nossa! Tudo isso?!"
O motorista faz cara de 'pois é' e fica por isso mesmo.
O jeito é sentar no banco da praça que dá de frente para o ponto final e aguardar. Maldita hora que deu seus fones para o sobrinho. Poderia estar ouvindo seu 'Play List' do Tiago Iorc que baixou no celular. Vai ter que se contentar com a paisagem daquele lugar.
Quanto tempo fazia que não olhava para o céu. A única coisa boa desse horário de verão era poder aproveitar um pouco do sol antes da noite chegar.
Seus pensamentos viajaram para longe e Felícia ponderava sobre a vida solitária e tão controlada que levava. Era difícil caminhar sem olhar para onde pisasse. Seus pés tinham que sentir o chão, a firmeza para prosseguir. Sua irmã mais velha, Tereza, nunca teve passo firme. Teve que casar cedo porque engravidou. Acabou desistindo dos estudos para criar o filho que viria a ser o único, porém muito amado por todos da família, principalmente pelo avô. O cunhado não era um príncipe, mas também não era nenhum ogro. Tereza tinha lá seu jeito meio que torto, mas era feliz. Felícia sabia só de olhar para sua irmã. 
Com a cabeça nas nuvens, nem percebeu quando o motorista aproximou e disse:
"Oi aí. Desculpe a demora, mas é hora da janta. O jeito é ter paciência. Logo seu ônibus sai."
"Tudo bem. Entendo. Afinal, somos todos filhos de Deus, não é mesmo?"
"Somos sim. E a hora da janta é sagrada, certo?" 
Os dois deram aquela risada meio sem graça e ...
"Você desce no ponto da Padaria Society, não é mesmo?"
"Sim. É o meu ponto." 
Felícia nunca nem se quer havia olhado para aquele motorista e ele sabia exatamente onde ela descia. Naquele instante ela ouviu uma voz lhe sussurrar: Se deixa levar.
O motorista aproximou um pouquinho mais e disse:
"Estou indo pra casa agora. Aceita uma carona?"
Quando deu por si, Felícia estava ao lado do Miguel, o motorista, se deixando ser levada e sorrindo feito boba. 
Calada Eu
Enviado por Calada Eu em 29/12/2017
Reeditado em 01/01/2018
Código do texto: T6211476
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