Albergue

Era frio e úmido. Como bueiro. Como fui chegar ao ponto de conseguir deitar a fronte sobre as pedras? Como sujeitei-me ao insujeitável?

Há muitos à minha volta, tantos que nem sei o nome, nem conduta de outrora, mas ainda assim me sinto só. Quando o ser humano deixa-se levar por seus instintos, acaba por torna-se algo inimaginável, incompreensível.

Como vês, eu me tornei tudo aquilo que repudiava, como somos enganados por nós mesmos. Como nos deixamos enganar.

Aqui ninguém me vê, só eu mesmo, e não gosto do que vejo, se é que vejo. Não vejo, minha habilidade de visão foi afetada, e eu, mesmo percebendo o que me ocorria, persisti.

Ali, no cantinho da parede pichada e tomada pelos fungos, está a jovem, grávida, o bebê não sabe quem é seu pai. Num frenesi instantâneo, como a divagar sob o céu que eu mesmo construí, pairo sobre abismos imaginários, mas que agora tornam-se reais, tangíveis. Percebo minha respiração, que de súbito está ofegante. O ar se rarefaz.

- Jovem, por que está aí? Não tem família? – Pergunto-lhe.

- Acho que tenho, mas não lembro mais quem são... Não lembro nem quem eu sou também...

Minha respiração me incomoda, os batimentos cardíacos, como solos de bateria são. Então resolvo interromper o curtíssimo dialogo que comecei. Vou à rua.

Carros. Pessoas. Poluição.

Tudo ali, convivendo harmoniosamente. Só eu que não posso entrar neste círculo simétrico. Continuo aqui. Imóvel.

Os que por mim passam, me repudiam, torcem nariz, viram as faces. Colocam em prática tudo quanto aprenderam, a sociedade ensina direitinho.

Vejo a fumaça negra que emana pelo ar, saído do escapamento do caminhão, tão velho quanto o mundo. Percebo que ele pode me ser útil, e o será à sociedade também. Neste momento, ele é tudo o que eu mais quero, vê-lo por debaixo é tudo o que desejo. Jogo-me à sua frente. Só ele conseguiu acabar com essa coisa que chamam de vida, só ele quis ser meu herói.