O lá não existe [conto]
Nossa, que sensação incrível estar amparado por uma camada grossa e macia de espuma. Não é a minha cama. Não quero abrir o olho e saber onde estou. Não quero sair daqui nunca mais. Sinto que há um fino e macio tecido envolvendo meu corpo. Como isso é bom. "Você tem que ir embora.” Essa fala não é minha? “Vou trabalhar e você não pode ficar aqui.” Sei como é. Eu saio e você volta a dormir. “É sério. Levanta. Vamos.” “Quem é você?” “Alguém que cometeu um erro. Vamos. Levanta.” Eu naquela cama realmente era um erro, mas estava começando a me sentir ofendido. “Posso tomar um banho antes?” “Se você precisa mesmo.” “Você tem uma toalha para me emprestar?” Pensei que se ela fazia questão de lençóis e colchão tão fantásticos a toalha poderia ser até de algodão de verdade. Algum tipo de flanela oriental tecida por crianças numa tecelagem no interior da Índia. Qualquer coisa desse tipo. “No armário do banheiro.” Não eram ruins. Eram como as minhas há uns dez anos. Fiquei um pouco frustrado, mas a ducha de gás fez isso passar em jatos de água quente que massageavam as costas e davam um novo sentido para a expressão relaxar embaixo do chuveiro. Fui educado, não usei a escova de dentes dela. Passei pasta no dedo, espalhei pela boca, fiz uns bochechos e sai decidido a manter aquele contato. “Posso te ligar uma hora que você tiver mais tranquila, para tomar um café e conversar.” “Acho que não.”
Fui para casa e quando entrei entendi perfeitamente porque eu era um erro para aquela bela senhorita. Conseguia sentir o cheiro de podre da geladeira da sala. Peguei um copo de água e fui para o quarto. Coloquei uma fita com umas músicas do Hendrix para tocar, acendi um baseado e deitei na cama que me aguenta a mais de uma década com o desprezo que uma criança de dez anos tem do Papai Noel do shopping. Questionei Deus de qual era a utilidade que eu tinha vivo. Porque ele ainda mantinha toda essa merda. Peguei no sono na esperança de sonhar com as respostas, mas nada Dele. Acordei com o telefone tocando e com um força interior me segurando na cama. A secretária eletrônica atendeu. “Se quiser deixe um recado, mas não garanto escutá-lo.” “Ei…….Neb……...se tiver aí atende…….tenho um trabalho para você……..vamos lá……..atende…….bom, se tiver interessado me liga até amanhã. É o Carlos.” As pessoas são assim. Te ligam do nada e falam: “Preciso que você construa um colisor de átomos para amanhã. Sei que você entende que o orçamento é baixo e o prazo curto.” “Claro. Vou só no banheiro dar uma cagada e já faço isso.”
Sai do banheiro e fui para cozinha. Liguei o rádio na estação de notícias porque precisava de barulho. “Este fim de semana deve ser de sol no litoral, com mínimas de…..” Não preciso disso. Coloquei na estação de hits dos tempos do meu pai e me senti feliz por eles considerarem Eric Clapton algo que meu pai escutaria. Preparei um café enquanto transformava pão velho em torrada no forno. Juntei tudo com um livro do Tom Sawyer e sentei na mesa para ler. Quando começava a entender melhor a relação entre Bob Dylan e Huckleberry Finn, e formular a teoria de que isso significava que a Senhorita que me expulsou do paraíso hoje de manhã não tinha cometido nenhum erro, e sim eu tinha, a campanhia tocou. Tentei me fingir de morto, mas a Cris era insistente. “Sei que você está aí e a porta está aberta. Estou entrando.” Continuei lendo na esperança de entender melhor onde errei e como vim parar aqui. “Já li esse aí. Moralismo barato. Eles voltam para casa no fim.” “E não deveriam?” “Sei lá, não voltaria.”
Perdemos mais uns cinco minutos discutindo futilidades como os valores de uma amizade na juventude. Quando percebemos que aquela linha de pensamento nos levaria a concluir que não havia mais o que esperar das nossas vidas medíocres decidimos ir para o bar. Pegamos uma dose de conhaque para cada e sentamos numa mesa com uma cerveja. “Essa onda conservadora é só um refluxo da falência dos ideais iluministas. Pós-modernismo puro.” “As favas com essa retórica. É um bando de mimados que quer viver no mundo encantado do papai e da mamãe.” Enquanto ruminávamos se Flaubert era mais responsável pelo caos do século XXI que E. L. James um tipo chave de cadeia sentou na nossa mesa. Olhei para Cris, ela olhou para mim, e nós dois olhamos para ele. “Sabe, alguma coisa me diz que vocês gostam de coisa boa.” Ele tirou três pinos do bolso e colocou em cima da mesa. “Cinquenta pratas para vocês.” O cara só errou em achar que a gente gostava de coisa boa e tinha dinheiro. Negociamos um por dez, pegamos uma garrafa de conhaque e voltamos para casa.
No caminhos discutimos alguma coisa sobre como a Nobel e a acadêmia tornaram o cretino do Hemingway num estereótipo enquanto Martha Gellhorn, a verdadeira heroína dessa história, foi esquecida. Mas tudo isso perdeu o sentido com o primeiro tiro. A coisa era boa mesmo. Rimos por horas pensando que Murilo Pontes era brocha e por isso queria tanto pegar Jorge Tadeu. A soma de conhaque + cocaína + risadas é sexo. Primeiro comi a Cris na mesa da cozinha. Ela gozou e reclamou que eu estava fudendo ela e não gozava. Propus que ela acabasse com o serviço no sofá com a boca. Ela topou na hora. Depois ficamos suando tremendo um no corpo do outro por umas duas horas até conseguirmos estabelecer uma frequência cardíaca abaixo dois 150bpm e apagarmos. Já eram nove da manhã quando acordamos grudados um no outro de suor. Olhei para o lado e me senti como o Renton numa espelunca qualquer de Edimburgo. Estava meio zonzo. Olhei para a Cris e senti pena de mim mesmo. Foi como a Senhorita do paraíso me dizendo que dormir comigo tinha sido um erro. Foi aquilo que ela viu em mim. Agora sei o que ela quis dizer. Sempre soube. Um bando de urubus começaram a se agitar no meu estômago. Deixei a Cris dormindo e liguei para o Carlos.