Retrato 3x4 de um barzinho do interior

“Olho em redor do bar em que escrevo estas linhas. Aquele homem ali no balcão, caninha após caninha, nem desconfia que se acha conosco desde o início das eras. Pensa que está somente afogando problemas dele, João Silva... Ele está é bebendo a milenar inquietação do mundo! ”.

Mario Quintana

O barzinho Felicidade. Garrafas nuas e suadas sobre as mesas. Homens e mulheres beijavam os cigarros. Riam como legítima defesa.

Na parede, os alvarás da licença. Por trás do balcão de madeira um senhor de meia idade sorri displicente e vai abrindo garrafas.

A clientela está animada, especialmente hoje que é dia de pagamento. Muitos sorriem por causa do efeito do álcool, alguns estão cabisbaixos sob o domínio de suas naturezas melancólicas. Um grupo mais próximo do rádio canta e assovia um forró do bom. De repente, alguém sobe na cadeira:

— Ô pessoal, um brinde aqui para o Marcão!

— Por que só para o Marcão? — Gritaram em coro algumas vozes sobressaltadas.

— Por que é o único aqui que tá solteiro!

— Êepa! Olha direito, rapaz! Disse uma voz de mulher.

— Muito bom pessoal, tem mais alguém escondendo alegria?

Dentro do boteco o clima de festa continuou a todo vapor. A música ocupou todas as cabeças, inclusive as cabeças melancólicas e as cabeças preocupadas com o amanhã.

Enquanto a cerveja, a vodca e a cachaça circulam entre as mesas, grupos formados na base da afinidade se completam e se congratulam em suas alegrias e tristezas.

— Você sabia que a bebida cura a dor de corno?

— É multiuso: mata, cura e deixa viver!

A um canto do salão de entrada uma velha churrasqueira chia sob as brasas. O estimulante cheiro de carne assada mistura-se aos vapores do álcool e ambos saem revoluteando pelo ambiente. As bocas e os narizes se abrem e se levantam intuindo que o melhor ainda está por vir.

—Lisa, meu bem, alcança aí a costelinha para mim!

— A gorda ou a magra?

— A gostosa, meu amor!

Enquanto as ruas uivam de solidão, dentro do bar Felicidade as vozes exaltadas prenunciam um entrevero. Alguém falou algo de alguém que não gostou: levantaram-se todas as cadeiras. Rumores estrepitosos, suores e carrancas de momento. Mas, um sábio vem da cozinha com o violão nos braços dedilhando felicidades. Não canta, pois traz uma gaita morena entre os lábios. As cadeiras voltam para o solo, as mãos espalmam e os pés e as cabeças seguem o ritmo do coração.

— Vamos dançar até gastar a sola do sapato!

— Vou gastar até o calcanhar!

Quando a lua já vai alta no céu, algumas pessoas se despedem do dono do bar e garantem para ele e, para elas mesmas, que conseguem chegar as suas casas, salvas de caírem nas valetas de construção que cortam algumas ruas da cidade.

Outros desistem de tentar explicar o inexplicável: simplesmente olham para o dono do bar com cara de bobos. Outros, menos polidos, soltam um arroto sonoro que significa entre outras coisas que tiveram uma boa noitada e uma mesa farta.

— Até mais, amigos e amigas!

— Até mais, Tonhão!

—Bota pra gelar, agora! — Disse um homem magro e cambaleante.

— Pó deixar, disse Tonhão, com os olhos injetados de sono.

A seguir, o botequeiro abriu a boca como se fosse comer a lua; esticou os braços como se estivesse se desamarrando e saiu assoviando uma musiquinha para crianças. Tinha uma cara boa.

Colocaria toda a bebida para gelar ainda de madrugada. Na manhã seguinte iria até a cidade vizinha comprar mais cerveja a um preço de atacado. Dormiria essa noite como havia trabalhado: com o corpo repleto de felicidades e o bolso cheio de dinheiro dos amigos.

Alguns destes amigos - os melhores – deixaram aquela noite e o barzinho rústico para trás como um sonho ao qual se pode voltar, mesmo estando acordados.

make
Enviado por make em 17/12/2017
Reeditado em 24/07/2022
Código do texto: T6201249
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