Flores da inocência
 
Kelly precisava se concentrar. Era um dia muito importante, no entanto sua mente não queria se fazer presente, insistia em voltar ao passado que deveria ficar lá mesmo... no passado. Não adiantava resistir, voltou para um ano qualquer do início da década de 80, numa cidadezinha quase esquecida do norte, com seus sete anos de idade.

Estava apreensiva. Tinha chorado e inventado dor de barriga, mas não tinha solução, naquele dia ela deveria empurrar a cadeira de rodas do seu pai para conseguir dinheiro para comprar comida.

Era sua primeira vez como acompanhante. Antes, apanhava frutas na floresta e as vendia para os caminhoneiros. Mas, desde que ficou trancada dentro de um caminhão estava proibida de ir para a beira da estrada.

Gostava de vender frutas, sempre ganhava presentes das pessoas que as compravam. O moço que a convidou para entrar no caminhão era gente boa. Foi muito gentil. Deu - lhe bombons e disse que tinha uma filha bonita e esperta como ela. Parecia com seu pai, até a pegou no colo e ajeitou seu cabelo, mas tinha um negócio duro em suas pernas, bem diferente do seu pai que tinha o colo mais macio do mundo.

Naquela ocasião, seu irmão fez um escândalo tão grande que o moço se assustou e foi embora, não deu tempo dá nem o dinheiro da boneca que tinha prometido. Kelly quase levava uma surra da mãe, chorou muito nesse dia, mas era uma menina esperta e desde que o pai ficou doente ajudava a mãe em tudo e logo esqueceu.

Eram tempos difíceis. O pai vivia quase que em estado vegetativo devido a uma doença degenerativa. Recebiam uma cesta do governo, mas naquele mês a entrega estava suspensa. Há um ano atrás seu pai estava bem, não tinham luxos mas a comida não faltava para ela e para os quatro irmãos.

A última vez que viu o pai andar foi quando um político foi até sua casa  para entregar a Certidão de Nascimento dela e dos quatro irmãos. Não sabia bem o que era, mas foi com esse papel que ela pôde começar a estudar, em troca seu pai prometeu votar em quem ele indicasse. Após a doença de seu pai, esse mesmo homem foi lá prometendo  aposentá-lo pelo Fundo Rural. No entanto, sua mãe dizia que era mais difícil que tirar leite de onça.

A escola era o melhor lugar do mundo. Tinha aprendido a ler rapidamente, queria ler tudo, pois era maravilhoso o que aprendia. Fez um amigo, que tinha pais ricos, era  ele que dava a ela vários gibis depois que lia. Kelly adorava todos, especialmente de super- heróis, lia - os várias vezes, depois os guardava numa caixinha com muito cuidado. Era seu maior tesouro.

No dia a dia ajudava a mãe entregando as roupas que ela lavava, mas tinha vergonha quando ia entregar as trouxas de roupas na cidade baixa, onde moravam os ricos. Sua mãe lavava e passava, ela fazia a entrega. Odiava quando encontrava algum colega. Uma vez teve que andar dez vezes mais para não passar perto de um, que vinha em sua direção. Detestava ser pobre! A mãe dizia que era a vontade de Deus, não entendia porque ele era tão malvado.

Mas a notícia que teria que empurrar a cadeira de rodas do pai era pior que as trouxa de roupas. Ficar no mercado esperando alguém dar uma moeda era vergonhoso, não queria passar por aquilo, mas os lavados de roupas não davam para comprar comida pra todos da casa, eram muitas bocas.

Kelly sentia raiva dos irmãos. Dormiam todos na mesma cama e ela sempre ficava quase caindo e, ás vezes, até caía. Dormiu preocupada, mas sonhou que era  a Mulher Maravilha e quando sonhava o mundo parecia tão perfeito! Não queria acordar.

Não teve opção! Foi chorando, mas foi. Ficaram horas e tudo que conseguiram foram alguns trocados, mal dava pra comprar arroz. Essa foi a única vez que pediu esmola com o pai, depois daquele dia não precisou ir mais, pois seu estado de saúde ficou crítico. Ele não pode ir nunca mais para o mercado, debilitou-se de vez. Dentro de si agradeceu por isso, torcia para que ele não ficasse bom logo, pois não queria passar por aquilo novamente.

Enquanto isso, para superar a pobreza fingia que era rica, se imaginava sendo muito rica. Lembrou-se do caminhoneiro dizer que ela tinha nome de princesa, passou a partir dali a se imaginar uma princesa!

Mas a necessidade era grande, e dia após dia a situação piorava. Num certo dia, ao chegar da escola, mais uma vez tinha apenas um punhado de arroz e um ovo para os seis. Pensava que sua mãe devia ser uma santa porque nunca estava com fome. Somente no futuro entenderia que ela não comia para sobrar para os filhos. Seu único vício era o café, sentia dor de cabeça quando ele faltava.

No dia seguinte, ao voltar da escola, não tinha comida em casa, na escola também não tinha merenda por causa da falta d'água. O que deveria fazer? Estava triste e se culpou por ter desejado que seu pai ficasse doente. Agora, sua mãe iria morrer de dor de cabeça. Teve uma ideia dolorida. Não estava doente, mais sentia a dor mais doída do mundo porque a pior dor é aquela que a pessoa sente naquele momento.

Pegou a caixa de gibis, seu "único tesouro", e foi à casa de uma colega, sabia que ela queria alguns dos seus gibis para completar sua coleção, trocou todos eles por um pouco de arroz, óleo e café. A mãe da garota ainda acrescentou feijão, açucar e macarrão. Saiu chorando por dentro e apertando os olhos para conter as lágrimas.

Mas ao chegar em casa sentiu-se uma verdadeira heroína quando viu sua mãe sorrindo agradecida com a chegada da comida. Não sabia ainda que quando uma janela se fecha, um portão se abre em algum lugar e sua trajetória estava apenas começando... Novas e maravilhosas expectativas estavam por vir...