Kalica: A minha história

Os meus primeiros dias

Ainda me lembro do dia em que nasci. Era uma manhã de domingo, chovia muito. Na realidade, era um temporal com raios e trovoadas. Um dia típico de verão no início de novembro, em plena primavera no Rio de Janeiro. No exato momento em que cheguei ao mundo, ouvi um barulho ensurdecedor de um trovão que quase destruiu os meus tímpanos.

Até hoje, quando percebo uma mudança no tempo com possibilidades de trovoadas, sinto medo e procuro um lugar abrigado, de preferência junto da minha mãe, do meu pai ou do meu avô. Com certeza, o pavor e o incômodo nos ouvidos que senti naquela manhã chuvosa são as causas que me levam constantemente às lembranças do meu nascimento.

Voltando ao meu primeiro dia de vida, passado o susto e o zumbido nos meus ouvidos, quando me ajeitei para manter-me aquecida junto à barriga da minha mãe, percebi que não estava sozinha. Ao meu lado, vi cinco cãezinhos que tinham as orelhas grandes como as minhas. Eles estavam mamando e conversando animadamente entre si. Educadamente, tentei entrar na conversa e disse: “Olá, pessoal!”. Eles não me deram a mínima atenção. Nem olharam para mim.

Em seguida, sentindo o cheiro do leite que escorria, meu estômago roncou de fome. Procurei e não encontrei uma glândula mamária livre. A minha mãe só tinha cinco têtas. Então, mais uma vez, de modo educado, perguntei: “Alguém está terminando? Eu poderia mamar um pouco? Também estou com fome”. Nenhuma resposta e nenhum oferecimento de vaga no “mamódromo”.

Havia entre eles certa afeição ou, pelo menos, algo que lembrava esse sentimento. Mas eu estava sendo tratada com desdém, digamos com indiferença. Nada mais expus, fiquei encolhida esperando uma oportunidade para mamar.

Naquele domingo, um pouco depois de duas da tarde, dois humanos, os primeiros que conheci, chegaram à grade que separava a nossa casa da deles e, surpresos com a minha presença, a mulher mais velha disse: “Oh, mais um filhote! Olá bebê, sou a Pat, a dona do sítio, e essa jovem ao meu lado é a Lena, minha filha”.

Ouvindo a conversa, fiquei sabendo que os cinco cãezinhos, todos machos, eram meus irmãos mais velhos, tinham nascido um dia antes, no sábado. E que eu, sem que elas entendessem o porquê, havia nascido cerca de trinta horas depois e com o biótipo um pouco diferente de toda ninhada. As minhas patas eram bem curtas e as orelhas bem grandes. Pat, a mãe, comentou com Lena, a filha: “Interessante, uma cadelinha, que tem sangue de basset e de vira-lata, parir cinco filhotes mestiços e um Basset Hound puro”. Então, a filha disse: “Mãe, quando pegamos a Laika na calçada e a trouxemos para casa, ela já estava prenha. Quem sabe? Talvez, um autêntico Basset Hound também tenha se aproveitado dela”. A Pat respondeu: “Sim, tudo neste mundo é possível, sempre haverá uma explicação. Mas, para nós, o importante é cuidar dos seis filhotes sem discriminá-los para que eles cresçam fortes e felizes”.

E assim aconteceu nos dias que se seguiram.

Eu e meus irmãos éramos tratados com carinho e sem distinção. No momento certo, cada um tinha a sua vez de ir para o colo. Eu adorava ficar nos braços da Lena. Ela acariciava as minhas orelhas e beijava-me no focinho.

A questão da falta de uma têta da Laika, a minha mãe biológica, foi resolvida pela Pat. Ela criou uma sequência a ser seguida por nós. Nos primeiros dias, a Pat é quem nos colocava para mamar seguindo o estabelecido. Logo na semana seguinte, aprendemos a fazer a fila andar sem que ela ajudasse. Íamos mamando um tempinho em cada têta, da primeira até a quinta, depois voltávamos para o ponto inicial, ou melhor, para a glândula mamária número um. Era uma diversão, eu e meus irmãos adorávamos aquela brincadeira de rodar e mamar.

O tratamento diferenciado que sofri por parte dos meus irmãos, quando do meu nascimento, deixou de existir tão logo eles perceberam que a Pat e a Lena realmente não nos diferenciavam por eu ser de uma raça pura de cães oriunda da França, pertencente ao grupo Hound, e eles mestiços.

Entretanto, somente depois que eles ouviram o que a Lena nos contou sobre os cães no Brasil, foi que realmente nos tornamos uma verdadeira família de seis irmãos. Ela disse que pelas diversas pesquisas realizadas, o mestiço era o pet mais popular entre os brasileiros, pois eles estavam presentes em mais de quarenta por cento dos lares do nosso país, e que era difícil encontrar um cão com as minhas características, ou seja, eu é que era diferente. Tomar conhecimento daquele fato, para mim nada significou, mas para os meus irmãos, de certo modo, os ajudou a banir um sentimento de inferioridade que havia começado com a minha chegada.

Então, enquanto nos foi permitido, nós seis e a mamãe Laika passamos a viver num ambiente maravilhoso de muitas brincadeiras. Duas ou três vezes por dia a Pat e a Lena apareciam para brincar conosco. Mesmo depois de tanto tempo, lembro-me das feições de cada um dos meus irmãos e da minha mãe biológica.

Tudo ia muito bem, até que numa determinada manhã de dezembro, eram quase dez horas, acordei com o som de vozes humanas que eu nunca tinha escutado. Em pé junto da grade, avistei a Pat conversando com um homem e uma mulher. E pela primeira vez ouvi alguém falar em “adoção”, mas naquele momento foi absolutamente obscuro para mim o significado daquela palavra. Porém, após certo tempo ouvindo o que eles conversavam, me dei conta que eu e meus irmãos seríamos entregues às famílias de humanos que se tornariam nossos donos. Não consegui entender de jeito nenhum em que consistia esse vínculo de ser dono. Nem eu nem meus irmãos éramos objetos para pertencermos a uma ou duas pessoas. Exceto pela racionalidade, eu naquela época achava que não havia outras diferenças entre nós e os humanos. Só compreendi alguns dias mais tarde, quando me separam dos meus irmãos e da minha mãe Laika.

A partir daquela manhã de dezembro, em que o casal havia adotado e se tornado dono do “Malhadinho”, o primeiro filhote a ser separado da nossa família, aquele lugar onde nascemos e que achávamos que era o nosso lar, antes tão animado e cheio de vida, com o passar dos dias foi se tornando melancólico e vazio.

A cada vez que o sol emergia acima do horizonte e brilhava vivamente nas folhas dos dois pés de mangueira do nosso quintal, anunciando um novo dia, eu e meus irmãos, que ainda estávamos na casa da Pat, ficávamos tensos em pensar que a qualquer momento o nosso dono poderia chegar e nos levar.

***

A minha família

Era início de janeiro, de uma manhã de céu azul, sem uma nuvem, quando os meus donos chegaram. Os bem-te-vis, as rolinhas, os sabiás, os sanhaços e os canários, todos nossos conhecidos e moradores das árvores do nosso quintal e do vizinho, faziam uma tremenda algazarra, um alvoroço de felicidades em homenagem aquele lindo dia de verão. Eu tinha terminado de mamar e brincava com os meus irmãos, o “Pitoco” e o “Chuvisco”, os últimos a serem adotados.

Como das outras três vezes anteriores, o meu coração disparou no momento em que ouvi a Pat, que conversava com os dois visitantes em pé junto à grade, repetir o mesmo discurso de quando alguém se interessava por mim: “Aquela é a Kalica, a única fêmea da ninhada e também o filhote que mais vem apresentando problemas de saúde. Mas que, segundo o Dr. Otto, o veterinário que nos dá apoio, uma das características dos Basset Hounds é apresentar ao longo da vida uma série de patologias. Por isso, estamos mantendo-a conosco por mais tempo. Ela não pode ser adotada por qualquer família, os seus acolhedores têm que estar cientes que ela dará mais trabalho e necessitará de mais atenção do que os outros filhotes”.

Mas, naquela manhã, tudo estava diferente, o céu, o sol, a algazarra dos pássaros, tudo.

E diferentes também eram os visitantes que me olhavam. Ao perceber que a conversa a meu respeito não cessava, eu parei de brincar e olhei para a mulher que argumentava com a Pat e para um rapaz que estava ao seu lado. Como tudo estava atípico naquele dia, quando nossos olhares se cruzaram, houve um grande envolvimento, uma identificação imediata aconteceu entre nós. Um sentimento que na época eu não conhecia e que os humanos chamam de empatia.

Então, sem tirar os olhos dos dois visitantes, caminhei em direção à grade e, com o olhar de pedinte, um semblante típico dos cães orelhudos da minha raça, lati de modo sutil e tentei subir na grade, num gesto de que estava pedindo colo. O jovem e a elegante senhora, sem nada falarem à Pat, entraram no canil e, num movimento sincronizado, pegaram-me em seus braços.

Naquele momento, senti a felicidade aflorar por todo o meu corpo. Foi ali que nasceu o meu amor pela minha família de humanos.

Enquanto a Pat falava com o dois sobre a minha adoção, tomei conhecimento que o jovem era filho da elegante senhora.

Depois de quase trinta minutos de conversa, a Pat disse: “Então, tudo bem! Os senhores podem levar a Kalica.” Ainda no colo do jovem, que na tarde daquele mesmo dia passei a chamar de pai, despedir-me dos meus irmãos, da Laika, da Pat, da Lena e segui para minha nova casa.

No carro, a caminho do endereço dos meus donos, fiz a minha primeira arte na presença dos novos parentes. Eu viajava no banco de trás, no colo da mãe do meu pai, quando de repente soltei um “pum” que contaminou todo o carro. Enquanto o meu pai, que estava dirigindo, abria os vidros das portas para expulsar os gases responsáveis pelo mau cheiro, a senhora elegante que passei a chamar de mãe, é isso mesmo, ela não quis ser minha avó, preferiu que eu a chamasse de mãe, quase morria de tanto rir da minha cara de sem graça. Acho que o mau odor foi potencializado devido à minha nova alimentação à base de ração, pois eu tinha parado de mamar a uns dois dias atrás.

Chegamos em casa quase na hora do almoço. Ninguém precisou mostrar-me o apartamento, pois assim que a minha mãe colocou-me no chão junto à porta de entrada da sala, eu percorri todos os cômodos cheirando os móveis e os cantos das portas. Terminei a minha inspeção na varanda, que naquele momento, para mim era o quintal da casa. Então, resolvi aliviar-me. Antes de terminar, fui repreendida: “Kalica, aí não é o lugar de fazer xixi!” A minha mãe gritou enquanto caminhava para o então quintal. Assim que terminei, ela pegou-me no colo e fomos até o canto esquerdo da varanda, distante cerca cinco ou seis metros da porta de acesso à sala, e apresentou-me o “sanitário higiênico pet”, uma bandeja onde se colocava fraldas absorventes, coberta por um estrado de plástico modular. Ouvi atentamente toda a explicação de como eu deveria usar. Lógico, fiquei prestando atenção, mas entendi muito pouco de como deveria proceder. Demorei mais ou menos um mês para realizar todo o processo de fazer xixi naquele recipiente que na nossa família era chamado de “pipódromo”. Sobre esse assunto, daqui a pouco contarei a técnica utilizada pela minha mãe para ensinar-me a usar corretamente o sanitário da varanda.

Depois do almoço, daquele primeiro dia junto dos meus novos parentes, fiz um passeio no playground do prédio e brinquei toda à tarde na sala e na varanda.

A minha mãe era uma mulher de média estatura, morena, na faixa dos cinquenta anos. Seus cabelos eram grisalhos, bonitos e curtos. No dia a dia, vestia-se com calça jeans, blusa de viscose ou de algodão e calçava sandálias baixas de couro. Tênis ela só usava para caminhar no calçadão da praia. Ela tinha uma elegância natural e despretensiosa.

Também de média estatura, não mais do que um metro e setenta e cinco de altura, o meu pai era moreno e tinha alguns traços da minha mãe. Usava o cabelo cortado no estilo militar. Em casa ou nos compromissos informais preferia usar bermudas com chinelos de dedo. Era um homem bonito, mas para mim a sua verdadeira beleza estava no sorriso e no olhar.

Já perto de anoitecer do dia em que cheguei ao apartamento conheci o meu avô, o marido da minha mãe e pai do meu pai. “É isso mesmo, um pouco confuso. Mas vocês entenderam? Ok. Então, vou continuar”.

Ainda em pé no pequeno hall junto à sala de visitas, ele, que já sabia da minha chegada, abaixou-se e chamou: “Kalica, venha conhecer o vovô!” Na afobação de atender ao chamado, saí da varanda numa corrida desvairada, esbarrei na mesinha de centro derrubando o vaso de porcelana chinesa que não resistiu ao tombo.

Enquanto a minha mãe catava os cacos da porcelana no chão, eu fiquei no colo do meu avô com o coração quase saindo pela boca, então ele disse: “Calma, ratinho. Não foi culpa sua. Deveríamos ter preparado o apartamento para te receber.” A minha mãe que não concordava em alterar a decoração, respondeu imediatamente: “Não mexi em nada e criamos os dois filhos, a Kalica vai aprender que não pode correr dentro de casa.”

O meu avô, que aparentava ter por volta de sessenta anos de idade, também tinha o cabelo grisalho e a pele morena, era um homem prudente, de grande percepção intuitiva e inteligente. Poucas vezes o vi de short ou de bermuda, adorava jeans azul e camiseta preta. Às vezes, não muito raro, chamava-me de “ratinho ou rato”. No começo, eu ficava um pouco chateada, depois acostumei.

Ao final daquele lindo dia de janeiro, apesar do meu envolvimento em dois aprendizados, usar o pipódromo e não correr dentro de casa, eu estava feliz por ter tido a sorte de ser adotada por aquela família.

Logo na semana seguinte, tive uma ótima surpresa. Nos finais de semana e feriados, nós íamos para casa da serra que além da varanda tinha um enorme quintal gramado. Eu viajava confortavelmente no banco de trás do carro do meu avô ou do meu pai. A vida no apartamento era muito boa, eu gostava de ficar olhando pelo vidro da varanda as pessoas na praia ou levando seus pets para caminharem. De manhã e de tarde, minha mãe levava-me para um passeio pela redondeza do prédio.

Mas eu gostava mesmo era da casa azul, assim que eles chamavam a nossa casa da serra. Lá a minha mãe cuidava das orquídeas, o meu avô andava de moto e eu me divertia com tudo que tinha no quintal e nos jardins.

Algum tempo depois de convívio com as pessoas, comecei a compreender e aceitar que, de certa forma, para o bem-estar de todos nós, animais domésticos, era realmente necessário que a ninhada fosse separada e os filhotes entregues aos cuidados das famílias acolhedoras, pois devido a essa prática os homens se tornaram os nossos melhores amigos e vice-versa.

***

O meu dia a dia

Sei que vocês gostariam que eu contasse milhares de travessuras, centenas de aventuras e dezenas de dificuldades que vivi ao longo da minha infância e da vida adulta, mas isso seria impraticável pelo tempo que levaria e também pelo meu natural esquecimento.

Vou narrar alguns acontecimentos e fatos não pelo grau de importância, mas sim em decorrência da ordem que eles chegam à minha mente.

“O xixi e o biscoito”

Não foi muito fácil aprender a usar o sanitário higiênico, pois logo nos primeiros dias aconteceu um acidente. Na segunda vez que fui sozinha ao canto esquerdo da varanda, ao descer do estrado, as unhas de uma das minhas patas traseiras engancharam no plástico. Então, saí arrastando o pipódromo, pois ele havia ficado preso no meu pé, por toda a varanda até o meio da sala. Assustada, lati como nunca tinha latido antes. Imediatamente, o meu pai chegou para socorrer-me.

Aquele episódio causou-me um trauma psicológico que levou a minha mãe a mudar o procedimento no treinamento para usar o banheiro.

Na nova técnica, não era necessário eu ficar com vontade de aliviar-me, pois de tempo em tempo alguém da casa, com um biscoito na mão, instava-me ir ao sanitário. Atraída pela guloseima, estando ou não com vontade, eu seguia para o canto da varanda e lá ficava parada esperando que o pipódromo fosse posicionado por baixo das minhas patas traseiras. Em seguida, eu fazia xixi e voltava correndo para receber o biscoito. Assim ficou fácil, aprendi bem rápido. Lógico que ganhar um petisco ajudou bastante.

Com o passar do tempo, houve uma pequena mudança no processo. Eu passei a decidir o momento de ir ao canto da varanda. Era só ficar em pé no meio da sala ou do corredor e latir, num tom grave, uma ou duas vezes que todos já sabiam que eu precisava ir ao banheiro.

Vou contar só para vocês! Nem sempre eu queria aliviar-me, queria apenas comer um biscoito ou um pedacinho de pão. Muitas foram às madrugadas que acordei e usei o artifício da latida apenas par comer algo e voltar a dormir.

“O sucesso no futebol”

Próximo do nosso prédio havia uma área bem arborizada onde os moradores dos apartamentos, donos de pets, levavam seus animais para passearem. Desde muito jovem passei a frequentar aquele local com o meu pai e às vezes com meu avô. Ao lado do espaço que nos era destinado, tinha um terreno gramado em que as crianças jogavam futebol.

Logo no primeiro dia em que vi os meninos correndo e chutando a bola fiquei com vontade de participar. Eu me encantei tanto com aquela atividade que quase não brincava com os meus colegas do “parcão”, esse era o nome que tinha na placa de acesso ao nosso espaço, ficava sentada olhando a bola.

Numa certa manhã de um domingo, não resisti, passei por baixo da tela e corri para participar do jogo. Fui com tanta velocidade que mergulhei por cima da bola dando duas ou três cambalhotas. Na corrida, as minhas orelhas se projetaram para os lados que quase virei um cão alado. As pessoas que assistiam a partida e também os meninos ficaram admirados com a minha performance que aplaudiram. O meu pai, que tinha corrido para me pegar, ficou todo orgulhoso. Depois daquela estreia espetacular, continuei jogando futebol até um pouco antes de completar dois anos de idade. Parei por recomendação médica, o veterinário disse à minha mãe que eu, por ser um basset, poderia ter sérios problemas na coluna se continuasse jogando “pelada” com os meninos.

A orelha

Como vocês já perceberam, mesmo para um Basset Hound com pedigree, tenho as orelhas grandes para a minha estatura. E esse fato chamava a atenção de qualquer pessoa que olhava para mim.

Eu ainda não tinha completado seis meses de vida quando o meu avô ou a minha mãe, não me recordo qual dos dois, de brincadeira, assim que eu terminava de comer usava uma das minhas orelhas, como se fosse um guardanapo, para limpar o meu focinho. Numa reação espontânea eu mordia levemente e mantinha o lóbulo auricular na boca. Eles riam e eu gostava da brincadeira.

Era tão divertido que uma semana depois bastava alguém falar “Kalica, pega a orelha” que eu instantaneamente meneava a cabeça, de modo a permitir que, com o balanço das orelhas, eu conseguisse pegar uma e a mantivesse presa à boca enquanto corria por todos os cômodos do apartamento ou da casa azul. O meu pai filmou e foi um sucesso no “YouTube”.

A lata de lixo

Uma das coisas que eu mais gostava de fazer era comer. Lembram-se do que contei sobre ganhar biscoito sem fazer xixi? Pois bem, eu também tinha outro costume relacionado à comida.

Rotineiramente, após o passeio diário pela redondeza do prédio com a minha mãe, eu ficava descansando na cozinha, num cantinho só meu junto à saída da porta de serviço. Ora dormindo, ora acompanhando o preparo das refeições e de olho na lixeira que ficava no chão, próximo do acesso à lavanderia. Eu observava quando alguém jogava fora cascas de legumes. Mas continuava quieta no meu canto até que não houvesse ninguém por perto. Então, eu caminhava silenciosamente até a lata de lixo e a derrubando com o focinho comia todas as cascas.

Certa feita, o meu avô, distraidamente, junto com as cascas jogou, naquela lata, um saco plástico com alguns pedaços de nervos e de gordura da carne que ele havia terminado de limpar. Repetindo o gesto de gulodice, no momento oportuno, fui até o lixo e comi tudo, até o saco plástico.

À noite comecei a me sentir mal. Muita dor no estômago. Vomitei várias vezes na varanda. Por mais que a minha mãe me desse remédio, eu não melhorava.

No momento em que meus pais decidiram me levar para uma consulta na clínica veterinária, isso na tarde do dia seguinte, vomitei no chão da sala. Quando o meu avô estava limpando-me reparou que havia um pedaço de plástico na minha boca. Sem perder tempo, e com ajuda da minha mãe, ele puxou lentamente o saco que ainda estava ligeiramente preso no meu esôfago.

Cerca de duas horas depois eu estava ótima, sem vômito. O ânimo de viver havia voltado.

Ouvi atentamente a conversa dos meus parentes sobre as minhas idas à lata de lixo. E de fato, o que eu havia depreendido da discussão, aconteceu, a lata de lixo simplesmente deixou de existir. É isso mesmo, não a trocaram de lugar, eles a puseram no depósito do prédio. E ficaram usando apenas a lixeirinha de pia. Lógico, o mesmo procedimento foi adotado na casa azul.

Eu deveria estar com dois, no máximo três, anos quando quase morri com o estômago “embrulhado” num saco plástico conforme acabei de contar para vocês. Mas também, como dito pelos meus colegas do parcão, houve outra decorrência relacionada àquele acontecimento. Eles comentavam, em tom de gozação, que as poucas características genéticas que eu havia herdado da minha mãe biológica desapareceram junto com a lixeira da cozinha, pois eu não mais “virava a lata” para comer cascas.

A casa azul

Como vocês já sabem, eu adorava passar os finais de semana na casa azul, pois lá tinha muito espaço e eu não sossegava. Até correr atrás dos grilos e dos sapos que apareciam no quintal me divertia.

Como foram muitas e muitas as aventuras e as peraltices que aconteceram durante as minhas estadas na serra, preciso pensar e escolher uma diferente...

Já sei! O meu primeiro e único porre.

Na casa, além dos jardins e das árvores com orquídeas, havia também uma piscina construída em cima de um deck que ficava cerca de um metro e meio de altura do chão. Durante a construção, que eu acompanhei, ouvi diversas vezes o meu avô comentar com o Bira, o pedreiro, que os degraus da escada de acesso à piscina deveriam ser construídos fora das normas previstas para impossibilitar a minha subida. Ele dizia: “Atenção, Bira, faça os degraus altos de modo que a Kalica não consiga chegar à parte superior do deck. Quero evitar que ela entre ou caia na água. Há muitos relatos de cães que morrem afogados nas piscinas de suas próprias casas”.

Tão logo a obra ficou pronta, o meu avô, vez por outra, com a intenção de testar a efetividade da escada com relação à minha segurança, ficava me chamando de cima do deck: “Kalica, venha aqui com o vovô. Sobe”. Eu tentava, mas não conseguindo vencer o primeiro degrau, e já sabendo que eles haviam sido construídos com aquele propósito, desistia sem nada reclamar. E continuava com os meus afazeres na parte baixa do quintal.

Num certo entardecer de verão, os meus parentes estavam no deck conversando animadamente enquanto comiam petiscos. De onde eu estava no gramado, um pouco afastado da piscina, conseguia ver as guloseimas nos potes. Contei cinco ou seis recipientes.

De repente o telefone da sala de estar tocou e a minha mãe foi atender. Logo em seguida, ela chamou o meu pai e meu avô e os três ficaram animadamente falando com alguém do outro lado da linha. Eu permaneci no mesmo lugar, olhando para as iguarias e salivando de vontade de provar algumas.

De tanto olhar e salivar, decidi arriscar uma subida no deck. Fiquei de pé, concentrei-me e corri como nunca em direção à escada. Venci os quatro degraus sem respirar. E rapidamente dei uma abocanhada em cada pote. Em seguida, em poucos goles, bebi toda a limonada dos dois copos que estavam próximos à escada. Não desci imediatamente após a comilança, como não tinha ninguém por perto, acomodei-me e fiquei curtindo a minha primeira ida à piscina.

Algum tempo depois, não muito, voltei à realidade quando vi e ouvi a minha mãe ao meu lado gritando: Kalica, como você chegou aqui? Meu deus, você comeu tudo e bebeu as caipirinhas!

No momento em que levantei, vi o mundo girando. Tudo rodava. Não enxergava a escada de descida. O meu pai, que apareceu do nada, pegou-me no colo e colocou-me no gramado. Com certa dificuldade, caminhei para o meu canto na varanda e ouvi as risadas e comentários: “Kalica está de porre. Olha como está cambaleando”.

Pior que ser zombada por todos, foi passar a noite vendo tudo ao meu redor balançando.

Depois daquele dia nunca mais bebi limonada.

A mochila do meu pai

Estou há bastante tempo, desde que aqui cheguei, falando ininterruptamente. Percebo que vocês já demonstram certo cansaço, o Pitoco por exemplo já cochilou umas seis vezes. Mas antes de passar para o último tópico previsto na apresentação do recém-chegado, vou rapidamente contar o que acontecia quando meu pai chegava do trabalho.

Naquela época, eu já estava um pouco debilitada. Sentia fraqueza nas patas, respirava de modo ofegante. Preferia ficar deitada no meu canto a desfilar pela casa procurando o que fazer. Nada de anormal para minha idade, pois já tinha completado treze anos.

Sempre que ele, o meu pai, chegava, estivesse onde estivesse eu corria em direção à porta da sala para recebê-lo. Ele gostava de me ver abanando o rabo e fazendo festa nas suas pernas. Depois, eu voltava para o meu canto e ele ia fazer o que gostava de fazer. Normalmente, assistia futebol na tevê ou lia.

Num determinado início de noite, eu percebi, pelo olfato e o barulho da chave na porta, que ele estava chegando. Diferente do costume, não me recordo se foi devido às dores nas pernas ou mesmo moleza, permaneci deitada no canto da cozinha. Em seguida, ouvi meu pai, demonstrando preocupação, chamar: Kalica, o que houve? Onde você está?

Nada fiz, continuei quieta no meu lugar. Eu tinha certeza que ele viria me ver.

Em menos de um minuto, ele já estava agachado ao meu lado passando a mão carinhosamente na minha cabeça. A mochila, acessório que ele considerava indispensável não só para viagem, mas também para ir ao trabalho, estava no seu colo. Pela minha facilidade de encontrar petiscos, achei que havia algo gostoso naquela bolsa preta e comecei a cheirar, da mesma forma que fazem os cães nas bagagens dos passageiros em alguns aeroportos.

Meu pai abriu a mochila e propositadamente permitiu que eu encontrasse um saco de balas. Eram jujubas especiais, ele meu deu três unidades. Uma vermelha, outra amarela e a última azul. Sinceramente, comi as três e não senti a menor diferença no paladar.

Nos dias que se seguiram, enquanto pude, continuei recebendo-o na porta e o acompanhando. Ele colocava a mochila com o zíper aberto no chão do quarto, próximo à sua escrivaninha. Eu enfiava o focinho, pegava o saquinho e ganhava as três jujubas coloridas.

Acho que devido à minha idade, eu já tinha completado treze anos, os meus parentes não mais se incomodavam que eu comesse guloseimas. Quando me viam cheirando a mochila, sorriam levemente e repetidamente a minha mãe dizia: “Deixa a Kalica aproveitar um pouco a sua terceira idade. Em breve, ela estará junto dos nossos amigos no céu dos cachorros”.

Eu nada entendia. Para mim, a mochila tinha se tornado a lata de lixo de quando eu era filhote.

***

A minha velhice

A minha falta de ânimo para ir receber o meu pai na porta de entrada foi se tornando quase uma rotina. Eu continuava ganhando as balas das mesmas cores, pois ele ia até à cozinha, colocava a mochila ao meu lado e eu, lentamente, pegava o pacote e o entregava. Sem levantar-me comia as três jujubas.

Os dias e os meses passavam no tempo certo, nada havia mudado. Da varanda eu via os meninos jogando futebol, os cães, que eu nem conhecia, brincando no parcão, as pessoas passeando no calçadão da praia. Eu é que estava mudando.

Apesar de não mais ter vontade de ir passear pela redondeza do prédio com a minha mãe, me sentia feliz. Gostava de ficar quieta no meu canto. A velhice tinha chegado.

E como vocês sabem, talvez nem todos, pois alguns chegaram aqui ainda na flor da idade, existe a velhice majestosa, a velhice asquerosa e a velhice deplorável. Então, nos cabe apenas cerca de trinta por cento de chance de sermos felizes quando estamos próximos da finitude.

Cerca de três ou quarto meses antes de aqui chegar, eu não mais conseguia andar. Respirava com dificuldades e sentia fortes dores nas pernas e na coluna. A minha mãe cuidava de mim como se estivesse cuidando de uma filha biológica. Para diminuir as minhas dores, de manhã e de tarde, ela me dava uma série de comprimidos.

Para varanda, ou para um rápido passeio no parcão, o meu avô me levava no colo.

O meu pai levou-me de carro na casa azul. Chegamos por volta da dez da manhã e voltamos logo após o almoço. Eu adorei o passeio, ele ficou comigo por quase uma hora sentado no deck da piscina. Apreciei as orquídeas, o gramado, as árvores, tudo...

Então, diferente de muitos colegas e amigos, tive a chance de ter uma velhice majestosa junto dos meus parentes humanos.

***

A minha despedida

A noite estava começando quando meu pai e o meu avô chegaram. Eu já tinha tomado os remédios, mas não quis jantar. As três pessoas que mais amei na minha vida estavam agachadas ao meu lado. O meu pai colocou as três jujubas na minha boca. Olhei e agradeci.

Já quase dormindo, ouvi os bem-te-vis, as rolinhas, os sabiás, os sanhaços e os canários, todos meus conhecidos e moradores das árvores do parcão. Eles faziam uma tremenda algazarra, um alvoroço de felicidades em homenagem aquele lindo dia que terminava.

Posteriormente, escutei muito longe a minha mãe dizer: “A nossa Kalica não passou bem o dia. Não comeu, não bebeu água, não fez xixi. Ficou todo o tempo à atenta ao barulho da porta, com certeza esperando vocês chegarem para...”.

***

A minha história

Senhores, terminei de contar a história da minha vida. Nada de mais e nada de menos. Vivi por quase quatorze anos ao lado de pessoas maravilhosas. Fui muito feliz junto da minha mãe, do meu pai e do meu avô.

Acabei de chegar e, logo que ultrapassei um lindo portal com a inscrição “Bem-vindo ao Céu dos Cachorros”, os encontrei aqui neste pequeno jardim acomodados e esperando que eu me apresentasse. E foi o que fiz, em um pouco mais de oito horas, relatei alguns detalhes do que vivi.

Agora, gostaria que vocês rapidamente se apresentassem ou pelo menos dissessem os seus nomes.

Os que estão aqui mais próximos, eu já os conheço.

Olá, mãe Laika, Malhadinho, Pitoco, Chuvisco e Vectra.

Por favor, você aí todo branco com pintas pretas, qual o seu nome?

“Eu me chamo Bambi”.

E você?

“Eu me chamo Shula”, “eu me chamo Rambo”, “eu me chamo Sheep”, “eu me chamo Princesa”, “eu me chamo Bolinha”, “eu me chamo Shang”, “eu me chamo Bob”, “eu me chamo Kika”, eu me chamo...

Sérgio Coutinho
Enviado por Sérgio Coutinho em 11/12/2017
Reeditado em 30/04/2018
Código do texto: T6195986
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