Fila
A fila comum era grande. A fila dos aposentados beirava a eternidade. O senhor Campos era o último e estava sob o sol. Praguejava entre dentes que onde já se viu, tanta gente, podia ter um dia próprio só para os aposentados receberem.
-Boa tarde, meu senhor. Guarda-sol?
-Não. Li em algum lugar que esse sol da tarde faz bem.
As duas filas avançavam lenta e descompassadamente. Na fila ao lado, um homem alto, forte e em plena forma ajustava os fones de ouvido. O senhor Campos lançava alguns olhares de inveja não só pelo avanço da fila. O outro percebeu. Percebeu ainda que o sol castigava a pele áspera e enrugada do velhinho. Pensou no seu avô ou no avô que ele poderia ser um dia.
-Pode ocupar minha vaga senhor.
-Muito agradecido, meu jovem!
Mal o outro se foi, olhares faiscantes de cobiça crisparam a nuca do aposentado. Os que estavam atrás o invejavam, os que estavam do lado na fila estanque também. Os que estavam à frente, em ambas as filas, não perceberam a indelével tristeza que sombreava o homem. Antes de chegar ao caixa, lutava tenazmente contra gases opressivos. Olhava, angustiado, para o outdoor da praça, mas só conseguia ver um vaso sanitário.
-Sua vez, senhor.
-A hora e a vez, até que enfim.
O caixa o atendeu, recebeu as contas e o dinheiro e devolveu-lhe as moedas. Colocou-as no bolso e saiu da fila. Caminhava apertadinho na calçada apinhada de camelôs, anunciantes e desempregados. Olhou para as quatro quadras, antes de chegar a casa, e pensou que poderia usar o banheiro da praça. Trotou dez metros e estacou:
-Vocês três estão na fila?
-Sim e já faz tempo.
Dentro do cubículo ouvia-se apenas o baque surdo como se um pedaço de tijolo estivesse caindo na piscina. Depois, uma descarga demorada e barulho de água. Senhor Campos se retorcia sem parar. Lágrimas escorriam e já começava a sentir a umidade quente invadir sua cueca. Anda, pelo amor de Deus começava a sussurrar o velhinho. A porta abriu-se va-ga-ro-sa-men-te e o senhor Campos avançou três passos, olhando para as outras duas pessoas e pôs a mão no ombro do primeiro da fila.
-Moço é urgência.
-O meu caso também.
Disse sem se virar e desgrudou-se dele com um dar de ombros. Assim que o homem adentrou o senhor percebeu, pelo rastro de odor deixado no ar, que a situação daquele era séria, também. Tão séria que os outros dois abriram mão da vaga. Poderia sim, ir na frente, não tem problema não. Muito agradecido ele disse, sem tirar os olhos do chão. Queria segurar o arrocho da cólica com a força do pensamento.
-O senhor é novo aqui?
-Nessa situação, sim.
De repente, outro barulho na latrina, som de água e sai lá de dentro o homem. Suado,desgrenhado e impregnado do fedor próprio e alheio. Assim que o senhor o encarou, de relance, o reconheceu. Ele, disfarçou, passou a mão na testa, enfiou os olhos na rua e o fone nos ouvidos. Saiu flanando para outras filas...