O VAGABUNDO E A ESTRELA

Acordou com o pipoco do trovão e o clarão dos coriscos molhando as ruas de paralelepípedo daquela cidade quente que nem a zanga das bestas. Dormia no vagão que sobrara daquela velha estação de trem daquela pequena cidade. Tinha vagado o dia todo atrás de caridade alheia, de um gesto amigo, de um pedaço de pão ... Deserdado que fora pelo destino, por Deus, por ele mesmo, depois de tantos anos de autoanálise, de anos culpando agentes externos; de dormir em telhados imundos, ruas ensanguentadas de lama e fedentina e mendigos que nem ele, tornara-se um vagabundo, um pária para a sociedade cristã ocidental mascarada que nem Tartufo em meio a prédios gigantescos e antenas de tv a cabo e descabimentada. Perdera referências, a tenência, padrões de equilíbrio, nesta desequilibrada batalha do Armagedom. Que era ele? O que era o mundo? Hospício! Almocreves, bestiais professores do desaber, cientistas na estúpida luta de provar a inexistência de Deus, enquanto a humanidade jaz com dores de barriga, febres altas, sarampo, tantas doenças curáveis se os laboratórios não fossem cúmplices deles, dos homens da ciência. Os sábios. Quem te viu quem te verá, anátema bacteriano das selvas sem King Kong. E ele, vagando mundo. De vera? Acostumara-se com aquela vida. Pelo menos não tinha de dar satisfação a ninguém. Gozava de uma liberdade marginal. E essa coisa de herói e bandido...

Aquele era um dia especial, segundo os cristãos emparedados pelos templos de aço, de pedra, de cimento armado. Diziam eles que era o Natal, o dia do nascimento do Cristo, o que viera salvar o mundo. Salvar de quê, perguntava ele. Nascera de uma mãe cristã, que vivia o cristianismo no dia a dia, embora de uma inópia de dar dó. Nunca entendera como alguém privado das mínimas necessidades básicas acreditava em Deus. Sempre lembrava os carões da mãe: olha aqui, menino, né porque nossa mesa né farta que a gente tem de culpar Deus, viu? Felicidade não se resume a isso não, tanta gente podre de rica qué infeliz, doente da cabeça, destemperada. Deixa disso, visse? A gente que faz nosso destino; tu tem a chance de ser gente na vida, toma prumo! Tomou não e deu no que é agora. Todo Natal ia a igrejas, num entrava não, tava doido? As pessoas olhavam pra ele de viés, algumas tapavam o nariz, mas ele num fedia não. Sempre tomava banho naquele rio de águas espelháticas, tão limpas que se via no fundo dele, fazia até a barba nele. Fedia não. Isso não. Batia de casa em casa oferecendo ajuda, posso lavar o carro, cuidar do jardim, pintar a casa, faço qualquer coisa. Mas a figura dele assustava, num sabia por quê. Às vezes lhe davam uma calça que desservia a alguém, até um paletó de um nanico que ia até seus cotovelos, umas botas furadas, mas gostava. Vida ia, vida vinha, destino ou Deus judiava dele, horas bêbadas e cafuzas, sonhos hippies e coloridos e musicais, às vezes vontade de findar aquilo tudo, num the end bem carmesim e pertinente. Aí nasciam flores na cabeça e elas germinavam.

Visitas findas e inúteis aos templos, certificando-se de que definitivamente igreja não é lugar pra Deus, dia voou e ele voltou ao vagão e tentou dormir. Cedo ainda, viu estrelas fazendo carrosséis e seduzindo a lua; alguns vagalumes piscavam-lhe convites; um cachorro gemeu solidão num beco tímido e ele adormeceu. Sabe-se lá por que, sonhou. Nunca sonhava. E no sonho deu de aparecer num repente que tempo algum se atreveu a contar um cabra no meio deles, os vagabas. Cabra graúdo, com um matagal na cabeça, chegando aos ombros, sujeito guapo era ele, sim. Uma calça puída, com remendos nos fundilhos, botas anêmicas, falava e falava, mandando a gente olhar pro céu, pra enxergar além das nuvens, das estrelas, do horizonte avermelhado de raiva pela falta de chuva. Ele e os vagabas olhavam o céu e só viam um azulão, sem nuvens, sem sinal algum de água... E aquele cabra desguiando de assunto e falando besteira. E num se alterava, gestual calmo, olhava pros olhos da gente como que furando a alma da alma da alma. De repente ele estendeu a mão e pegou umas estrelas. Deu uma a cada um. E sumiu, como sumiu o sonho. E ele acordou. Manhã carregava o frio no bornal da noite. O vagão não tinha porta e o vento do ventre da manhã invadia tudo. Pegou um cotoco de vela e acendeu e viu, grande e brilhante, prateada e luzidia, uma estrela. Ao lado do travesseiro.

Matuto Versejador
Enviado por Matuto Versejador em 05/12/2017
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