O purgatório de Miguel
Miguel é o personagem mais peculiar das redondezas. Em dias nublados, é fácil encontrá-lo passeando, sereno, com flores e livros saindo discretamente da sacola. Acho que ganhou na loteria; escritor, jovem e ainda por cima, bem resolvido. Já em dias quentes e movimentados, Miguel carrega a própria sombra no olhar.
Tem hábitos normais, mas basta uns instantes em sua companhia para perceber que prefere ficar sozinho, apreciando uma felicidade torta em seu universo particular. Há quem diga que Miguel está deixando, aos poucos, de apreciar a luz do sol e este mundo cão.
No dia em que o encontrei num café, aceitei o desafio de tentar desvendar aquela alma cheia de mistérios e fios soltos. Sentei à sua frente e, sem dizer uma única palavra, olhei dentro do oceano negro que havia em seus olhos. Miguel, sem medo nem ira, mostrou-se como uma criança que se desgarrou da mãe e estava confusa e sozinha num mar de pesadelos. Cada vez mais cansado, cada vez mais distante. E então uma luz se iluminou naquela bagunça, como um sorriso travesso em seu rosto, e eu vi um castelo de páginas e letras que teciam realidades fantasmas, amores perdidos e histórias malditas, conduzindo até o final do abismo.
Percebi que seu mundo, cheio de livros e sabores, lhe concedia um paraíso excêntrico, porém isso não encaixava na realidade miserável que lhe havia laçado num purgatório de eterno descaso e solidão. Miguel, dividido em si mesmo como um pão, simplesmente levantou e partiu com o vento, levando tesouros e desgraças que tive o prazer de entender por oitenta segundos. Era uma criatura das trevas e da luz, dessas que enchem as noites da cidade, carregando veneno na mente e inocência em todo resto.