Do Natal e outras abstrações

“Uma gaiola saiu à procura de um pássaro”. Franz Kafka

Todo fim de ano havia inquietação e falatório. As pessoas de sempre procuravam alterar o nome e a data de fundação da cidade. Baseavam-se no mais convincente e impalpável dos argumentos: a vontade deles. Para esses honoráveis cidadãos Safira não era o centro do universo, mas eles agiam como se fosse. Expressavam publicamente o que queriam que todos pensassem:

-Não há cidade mais acolhedora no mundo todo!

-O planeta não seria o mesmo sem nossa cidade!

Alguns deles, os mais esclarecidos, teorizavam que o Universo não tinha um centro e, por isso, o centro estava em toda a parte. Portanto, nossa urbe pode, muito bem, ser o umbigo do mundo, diziam. As pessoas menos esclarecidas não afirmavam e nem negavam tal teoria, pois tinham preocupações mais concretas e imediatas: precisavam trabalhar para comer, para se vestir, comprar medicamentos e manter suas casas.

-Você ouviu que querem mudar o nome da cidade?

-Pouco se me dá o nome que tem, se não me faz bem!

Todos os anos, no Natal, comemorava-se o aniversário da cidade. Quer dizer, nem todos comemoravam; apenas aqueles que tinham interesses imediatos em tal data: os comerciantes locais, os funcionários públicos e os descendentes dos pioneiros. Por outro lado, há os que não se importam nem com o próprio aniversário e julgam desnecessário comemorar qualquer coisa que não seja sua parca e fugaz felicidade, no que estão certos.

-Jesus é Safirense!

-Se ele transformar em vinho a nossa cachaça.

Ecoava na rádio local argumentos tais como: Você acha certo que não tenhamos uma data própria para que possamos mostrar para o mundo a importância do lugar em que vivemos?. Sim, é óbvio que não é certo, respondiam diversos ouvintes. No entanto, entre os menos preocupados importava apenas saber que no fim de dezembro se comemora o Natal, sendo que esse fato já é por demais importante e lucrativo. E era um milagre que a cidade fizesse aniversário no mesmo dia em que se comemora o Natal!

-Quem não tem uma data, não tem história!

-Felicidade tem história?

As reuniões convocadas pela Câmara municipal, a fim de escolher um novo nome e remarcar a data de aniversário para a cidade, terminavam sempre por falta de participantes. Nessas reuniões iam apenas o prefeito, seu vice e um ou outro vereador, que não alegasse doença, força maior etc. Por fim, nem convocavam mais semelhantes encontros, pois os mais afoitos afirmavam mesmo que isso era assunto de somenos importância. Se não resolvemos essa questão durante o ano, não será em uma ou duas noites que haveremos de resolver, insistiam.

-Vamos embora, resolvemos no ano que vem.

-No ano passado você disse a mesma coisa.

-Fica valendo o que eu disse agora.

Mesmo assim, Safira toda se iluminava com a chegada das Festas. Todo e qualquer poste ficava recoberto de minúsculas lâmpadas reluzentes. Havia um fervor e alvoroço que lembrava os grandes centros. Nos jardins das mansões, as luminárias dividiam o espaço com os automóveis. Nos pequenos espaços à frente das casas pobres, as lâmpadas dividiam o lugar com os cachorros. Quando chegava o mês de janeiro, muitos sentiam o peso da cobrança da taxa de iluminação pública.

-Vizinha, olha o tanto que subiu a luz!

-Nem tudo o que sobe, desce!

Os outdoors, as faixas e os cartazes traziam o desenho de uma pedra azul e lapidada. Os idealizadores do desenho discutiam a respeito da tonalidade da cor. Enquanto uns preferiam que fosse azul-turquesa, outros desejavam que fosse azul-celeste; outros ainda diziam que deveria ser azul-marinho. Não havia consenso a respeito da cor da pedra-símbolo da cidade. Como esperar que chegassem a um consenso a respeito de assuntos mais importantes para a cidade?

-Você viu que cartaz lindo?

-Olha bem, pois nós vamos pagar por ele.

O nome da cidade, que fora escolhido pelos pioneiros, pouco dizia para as gerações presentes. Os donos atuais da cidade costumam afirmar que o nome diz muito sobre um lugar. No entanto, aqueles que não possuem nem uma casa para morar sabem que um nome é apenas um nome e não diz tudo sobre coisa alguma. Preferem acreditar que qualquer que seja o nome que a cidade tenha eles terão que aceitá-lo, pois não foram convocados a nomear o que quer que seja.

-Você vai botar nome na cidade também, Tiquinho?

-Num butei nômi nem ni meus fios. Foi as mãis...

Muitos pensavam assim. Havia ainda os que não pensavam nisso. E eram um pouco menos preocupados. Estavam, boa parte do dia ou da noite, em alguma esquina, boteco, alguma igreja; esperando que a banda passasse para dançarem conforme a música.

make
Enviado por make em 30/11/2017
Reeditado em 02/11/2019
Código do texto: T6186193
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