Conto das terças-feiras – O tio Dr. Gondim

Gilberto Carvalho Pereira – Fortaleza, CE, 28 de novembro de 2017

Meu tio, Abílio Gondim Pereira, que exigia ser chamado Dr. Gondim, irmão de meu pai, ainda adolescente migrou para o Estado de São Paulo seguindo padrão comum a muitos cearenses, no início da década de 1920. Por algum tempo, sua família ficou privada do contato com ele. Sempre foi o filho ausente, o tio mais difícil. Nem mesmo meu pai, que nascera na década de 1920, o conhecia pessoalmente, vindo a conhecê-lo somente em 1943, quando ele estava em Fortaleza para visitar a família. Foi nessa ocasião que ele convidou meu pai, que estava com 19 anos, casado e já com três filhos, para ir com a família para São Paulo, para trabalhar com o irmão que acabara de conhecer.

A família só sabia que ele se casara com uma descendente de italianos e trabalhava como engenheiro na Estrada de Ferro Central do Brasil. Era uma pessoa de bem, de relacionamento político com Getúlio Vargas, Carvalho Pinto, Jânio Quadros e outros. Morador da Alameda Lorena, esquina com a Rua Augusta, local nobre da Cidade de São Paulo.

No ano de 1963, fiz o mesmo caminho do tio Abílio, com o mesmo propósito, estudar. Ao conhecê-lo, o medo e o terror que haviam colocado em mim, sobre esse tio, dissipou-se. De cara achei-o agradável, enorme semelhança com Adoniran Barbosa, sambista, compositor e cantor do sucesso “Trem das Onze”, gravada em 1951. Só não carregava o chapéu igual ao do cantor, mas sempre se mantinha dentro de um paletó preto e colete, usando gravatinha borboleta e lenço branco no bolso do lado esquerdo do paletó. Fumava desesperadamente um cigarro fedido e sem filtro, mas com piteira. Cada baforada era uma pose. Parecia um lorde inglês, embora de estatura baixa.

No primeiro domingo que estive em sua casa ele me perguntou se eu já havia “pegado” uma mulher. Acabrunhado, respondi que não. Com um sorriso sarcástico ele falou:

— Vou lhe ensinar como fazer isso. Hoje vamos dar um passeio pela calçada da Loja Mappin, onde as mulheres mais bonitas de São Paulo praticam o footing, você vai gostar, disse-me ele.

Ao estacionar seu carro ao lado da Loja Mappin ele passou a observar as garotas que vinham e voltavam, algumas entrando em carros alto luxo e zarpando em velocidade. Em dado momento ele se virou para mim e disse:

— Preste atenção, veja aquelas duas belas garotas que se aproximam. Dizendo isso, colocou a cabeça para fora do veículo e jogou alguns beijos para elas.

A reação das garotas foi imediata. Baixaram as cabeças e, para que todos que por ali passavam as ouvissem, falaram:

— Oi vovô, não está na hora de ir para a sua casa? E dando gargalhadas elas se afastaram.

A resposta do tio foi ácida:

— Vovô é a #@¥ #@¥. Volta aqui que eu mostro o vovô bem vivo!

A reação do tio Abílio deixou-me constrangido. Eu não estava acostumado a presenciar atitude tão grosseira. Ele pediu-me desculpa e voltamos para casa. — Não aprendi nada!

Naquele dia, fizemos um trato. Aos domingos eu almoçaria com eles, não poderia faltar. A exigência era que teria de ir trajando paletó, não precisaria gravata, foi categórico! Fiz isso durante três anos sem faltar um domingo sequer.

No dia que faltei esqueci-me de avisá-lo. Passou segunda, terça, na quarta, ao entrar em uma lanchonete percebi um telefone fixo bem na minha frente. Era vermelhão e parecia dizer: “telefone para o seu tio”. Procurei em meu bolso uma moeda correspondente a uma ligação e liguei. Já era noite, do outro lado da linha atendeu uma voz desconhecida para mim:

— Por favor, eu gostaria de falar com a Áurea.

Do outro lado alguém perguntou:

— Quem quer falar com ela?

— Gilberto, primo dela, disse eu.

Esperei alguns segundos e uma voz fanhosa e trêmula sussurrou:

— Meu filho, venha imediatamente para cá. Pegue um táxi, eu pago aqui.

Na tentativa de saber o que estava acontecendo perguntei:

— Áurea, você está gripada, está chorando?

Ela não respondeu e passou o telefone para quem eu falara anteriormente.

— Gilberto, faça o que a sua prima lhe pediu. O seu tio faleceu hoje à tarde. O telefone caiu de minha mão, um dos atendentes da lanchonete percebeu, pediu para eu me sentar, trouxe um copo com água. Eu bebi, agradeci, paguei o que devia e fui em direção a um táxi.

No táxi, eu passei o endereço para o motorista, sentei-me no banco traseiro e recostei-me. De repente. exclamei:

— Como eu gostava do tio Abílio! O motorista deu uma freada brusca, olhou para trás e perguntou:

— O que você disse, cara? Não entendi!

Fazendo-me de desentendido, balancei a cabeça negativamente. Silêncio total durante todo o percurso. Pouco mais de 20 minutos eu entrava na casa de meu tio, a cena que ali se me apresentava era bastante estranha. Gente que eu conhecia e que não conhecia chorando e um caixão, já fechado, posto no meio da sala. Alguns comentavam que fora ataque cardíaco fulminante.

No outro dia fui procurado por um preposto da diretoria da Estrada de Ferro Central do Brasil, que pedia para eu ir até o escritório de meu tio, apanhar alguns documentos dele que não poderiam ser vistos pela família. Na verdade, era um contrato de locação do apartamento que eu morava e recibos de pagamento do aluguel. Era a sua garçonnière, para onde ele levava garotas de programa. Quando fui morar, lá ele só apareceu uma vez, com uma japonesinha bem bonita. Antes, pediu-me para descer, era o 24º andar do Edifício São Vito. Esperei por duas horas até que eles saíssem.

Ato seguinte, aluguei outro apartamento, levei os móveis herança e encerrei o contrato. Tia e primas jamais ficaram sabendo da existência desse imóvel. Só estou contando agora porque não há mais ninguém vivo, da família. Tio e tia viveram juntos por muito tempo, isto é, até que a morte os separou. Como eu gostava daquele velho que nossa família cearense não apreciava muito!

Gilberto Carvalho Pereira
Enviado por Gilberto Carvalho Pereira em 28/11/2017
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