O Sal da Terra
“Caminhamos porque somos obrigados a caminhar. É o único motivo por que todos caminham. Porque querem alguma coisa melhor do que têm. E caminhar é a única oportunidade de se obter essa melhoria. Se querem e precisam, têm de ir buscar. É pena que se tenha de lutar tanto assim.” JOHN STEINBECK.
No subúrbio os despertadores acordam os galos. Corpos mal-dormidos e pensamentos mal-pensados jogam água no rosto. Despejam café nas gargantas para afastar o sono, que gruda nos corpos, de quem vai trabalhar nas searas alheias.
São uma legião de boias-frias, diaristas e fazedores de bico que precisam acordar mais cedo que o trabalhador comum. Para eles e elas o dia de trabalho rouba-lhes boa parte da noite. Saem cedo de suas casas e voltam tarde, às vezes escurecendo. Ficam em casa só o tempo de dormir. Alguns, afortunados, têm o acalanto da voz amada a dizer:
-Vai com Deus!
-Fica com Deus também!
Jonas está agora em cima do caminhão. O balanço monótono e perigoso da carroceria, por sobre buracos, causa-lhe uma espécie de vertigem. Seu corpo pendia para a queda e suas mãos agarravam firme na corda esticada que junta as duas laterais da carroceria. Não é só a cachaça, tomada aos goles, que o faz bambo, mole. É, sobretudo, o sono. Um pouco de fome misturada com a pressão baixa, causada pela insolação dos longos dias de trabalho, também contribuem para o delírio.
-Você viu a lua tremer?
-Quem tá tremendo é você. Qual erva você fumou?
Olha para a paisagem e vê, além da plantação de cana, vultos nas nuvens de chuva. Parece Deus, que vem rolando na torrente, acompanhado de anjos de algodão. Alguns segundos depois:
-Toma mais um gole, tristeza não paga conta!
-Água qui passarim num bébi, burro véio gargareja.
Quando chovem ficam tristes e alegres. Tristes porque deixam de ganhar o dinheiro para pagar as contas e alegres porque podem dormir até mais tarde, ir às ruas, encontrar amigos e ver pessoas. Há dias em que dormem a tarde inteira e têm que dar satisfação:
-Você vai amanhã, filho?
-Se a senhora mi acordá...
Nuvens baixas e velozes prometem um dia chuvoso. Acomodados debaixo de uma lona suja vislumbram a aurora cedendo espaço ao sol sedento. Sol de chuva. O que queima mais, pois prenuncia a festa da natureza toda sob as águas.
-Tô doido pra trabalhá, mas num chóvi...
-Praga de urubu não mata cavalo...
Quando a terra descolou do céu trouxe com ela um pouco dele. Mas, ficou lá em cima um pouco da terra também. Veja as flores, os rios e animais. Duvido que tem homem, mulher e menino que pense que isso não é coisa de Deus! E quero ver também quem não desconfie que as pedras lá em cima rodando, a poeira e o vento não são coisas da terra!
-Somos o sal da terra.
-E o açúcar também.
Completava o ditado popular um homem de barba gris. Este se chamava Isaías e assim falava nos dias de chuva. Era o único letrado daquele grupo de pessoas. Chamavam-no, respeitosamente, de Profeta. Tinha manias de andar com uma bíblia debaixo do braço. Não largava nem para ir pra roça. Enrolava-a numa sacola de pão. Na hora do almoço, embaixo do pé de árvore, costumava folheá-la. Era hábito. Quando um ou outro pedia que lesse para eles, repetia sempre a mesma passagem. Os outros desconfiavam de que ele não soubesse ler, mas havia decorada certos trechos de tanto ir à missa aos domingos de manhã.
-Vai chegar o dia que nóis vamos construir as casas e vamos morar nelas...
-E quem vai pagar os aluguel?
Jonas olhava para Isaías e para os demais companheiros naquele caminhão. Todos tão absortos. Ninguém se queixava de ter que trabalhar tão longe de onde morava. Alguns até gostavam de estar ali, no aglomerado da turma. Jonas não gostava, mas também não desgostava. Era só o que sabia fazer. Seu pai e o pai de seu pai haviam morado na roça no tempo em que cada um podia plantar a sua própria comida e ordenhar sua vaquinha. Agora era isto: tinha de trabalhar nos lugares nos quais antigamente seus antepassados viveram e sonharam.
-Acorda cara, já tamo chegando.
-Mas, nem durmi ainda.
Os solavancos do caminhão o impediram de continuar pensando. Tentava se acomodar nas tábuas duras do assoalho. Naquele momento não conseguia pensar mais sobre isso. Apenas percebeu, vagamente, que havia pensado algo bom. Cutucou o companheiro do lado e pediu o isqueiro emprestado. O dele tina caído no vaso sanitário de madrugada. Colocou-o em cima do fogão pra secar. O companheiro sussurrou:
-Hoje preciso trabalhar por três.
-Quando aumenta as bocas, a gente perde a cabeça.
Mas, havia refrigérios. Jonas olhava embevecido para a garota com a camiseta azul-escuro do Guevara. Como era linda e suportava o sereno da manhã, o sol ácido do meio-dia e a poeira preguenta da tarde no seu corpo de pomba viçosa! Retribuía inquietos olhares. Viu no verde da cana um suspiro de vida; um farfalhar de saias nas suas ásperas folhas. Na hora do frio almoço, a quentura de seu peito lhe tirou a fome. Apenas dois passos para trás da moita e estavam livres da visão geral:
-Qual é a sua graça?
-Maria e a sua?
Na volta o caminhão já não trepida tanto. Vem cheio. De carga, pessoas e sonhos. Antes de chegar a casa ainda têm que descarregá-lo no pátio da firma. Alguns chegarão cansados, outros chegarão muito cansados e Jonas chegará como quem vê o mundo através de olhos enamorados: compassivo e jubiloso. Mesmo assim terá que dormir cedo, se quiser acordar cedo. Sonhará, talvez, com o brilho dos olhos castanhos e acordará para o verde-pálido da enorme plantação de cana.