NEGRINHO
Nair Lúcia de Britto
Um menino negrinho, bem negrinho, chamou minha atenção logo que entrei num quarto largo, de hospital, onde várias pacientes estavam internadas.
Eu, pouco mais que uma menina, sentia-me atordoada, amedrontada, triste, carente e inconformada; porque, em vez de estar no Colégio, estava ali internada naquele hospital, junto àquelas senhoras idosas; umas mais, outras menos.
Mas quando vi aquele negrinho de quatro anos de idade, no máximo; todo de branco, sob os alvos lençóis, quase esqueci meu drama interior diante do drama daquela criaturinha indefesa que gemia e gemia de dor.
Aproximei-me do leito dele, querendo fazer algo para atenuar um sofrimento grande demais para uma criança tão pequena.
-- Que aconteceu com ele? – eu perguntei às companheiras de quarto.
-- Foi atropelado, coitado! E sente muita dor!
Olhei pra ele, sentindo-me incompetente para fazer algo por ele, por mais que meu coração quisesse; era em vão.
Fui guardando meus pertences na gaveta do criado-mudo, ao lado do leito a mim destinado. Era bem próximo do leito em que o menino se encontrava.
Nem me dei conta das horas que passavam, nem o que acontecia à minha volta. Eu só via aquele menino inocente sofrendo, sem poder fazer nada.
A noite chegou e a hora de dormir também. Fez-se um silêncio, que só era quebrado pelos gemidos do pobre garoto.
Deitada com a cabeça sobre o travesseiro, minha mente girava, atordoada com aquela situação tão inusitada para uma adolescente que não estava acostumada a ver as durezas dessa vida.
A noite se arrastava, o coração apertado com todas aquelas sensações doídas; algumas por mim mesma, outras pelo menino.
De tempos em tempos, enquanto a madrugada avançava, o menino pedia:
-- Agua, água, água...
Eu levantava da cama e levava um copo de água à sua pequena boca ressequida. Mas ele não bebia a água, apenas deixava que eu molhasse seus lábios e, por uns minutinhos, parecia aliviado.
Eu voltava a me deitar, mas logo depois tornava a levantar para atender o menino que insistia em pedir:
--Água, água, água...
Uma das pacientes, então, retrucou:
-- Deixe o menino. Descanse! Ele pede água, mas não bebe. Deixe-o chamar... vá dormir!
Mas mesmo assim eu continuei atendendo o garoto; não tinha coragem de vê-lo suplicar por água e não acudir.
Lá pelas tantas, o cansaço me venceu e eu dormi. Quando acordei já era dia claro, e as enfermeiras traziam o café da manhã.
Instintivamente lembrei-me de pronto do negrinho com sede e espantei-me ao ver seu leito vazio.
-- Onde está o menino? – perguntei, ansiosa.
-- O menino morreu bem cedinho, você estava dormindo. Descansou!
Senti um nó na garganta, uma vontade de chorar por aquele negrinho tão frágil, inocente, tão lindo...
Só havia algo que abrandava a minha grande tristeza. Algo que, em silêncio, eu disse a mim mesma:
Ainda bem que eu não lhe neguei seu último pedido!
José Ferraz de Almeida Júnior é um pintor brasileiro, autor de "O Negrinho". Nasceu em Itu, no ano de 1850 e faleceu em Piracicaba, no ano de 1899.
A dor é igual para brancos e negros. Somos todos irmãos.
Nair Lúcia de Britto
Um menino negrinho, bem negrinho, chamou minha atenção logo que entrei num quarto largo, de hospital, onde várias pacientes estavam internadas.
Eu, pouco mais que uma menina, sentia-me atordoada, amedrontada, triste, carente e inconformada; porque, em vez de estar no Colégio, estava ali internada naquele hospital, junto àquelas senhoras idosas; umas mais, outras menos.
Mas quando vi aquele negrinho de quatro anos de idade, no máximo; todo de branco, sob os alvos lençóis, quase esqueci meu drama interior diante do drama daquela criaturinha indefesa que gemia e gemia de dor.
Aproximei-me do leito dele, querendo fazer algo para atenuar um sofrimento grande demais para uma criança tão pequena.
-- Que aconteceu com ele? – eu perguntei às companheiras de quarto.
-- Foi atropelado, coitado! E sente muita dor!
Olhei pra ele, sentindo-me incompetente para fazer algo por ele, por mais que meu coração quisesse; era em vão.
Fui guardando meus pertences na gaveta do criado-mudo, ao lado do leito a mim destinado. Era bem próximo do leito em que o menino se encontrava.
Nem me dei conta das horas que passavam, nem o que acontecia à minha volta. Eu só via aquele menino inocente sofrendo, sem poder fazer nada.
A noite chegou e a hora de dormir também. Fez-se um silêncio, que só era quebrado pelos gemidos do pobre garoto.
Deitada com a cabeça sobre o travesseiro, minha mente girava, atordoada com aquela situação tão inusitada para uma adolescente que não estava acostumada a ver as durezas dessa vida.
A noite se arrastava, o coração apertado com todas aquelas sensações doídas; algumas por mim mesma, outras pelo menino.
De tempos em tempos, enquanto a madrugada avançava, o menino pedia:
-- Agua, água, água...
Eu levantava da cama e levava um copo de água à sua pequena boca ressequida. Mas ele não bebia a água, apenas deixava que eu molhasse seus lábios e, por uns minutinhos, parecia aliviado.
Eu voltava a me deitar, mas logo depois tornava a levantar para atender o menino que insistia em pedir:
--Água, água, água...
Uma das pacientes, então, retrucou:
-- Deixe o menino. Descanse! Ele pede água, mas não bebe. Deixe-o chamar... vá dormir!
Mas mesmo assim eu continuei atendendo o garoto; não tinha coragem de vê-lo suplicar por água e não acudir.
Lá pelas tantas, o cansaço me venceu e eu dormi. Quando acordei já era dia claro, e as enfermeiras traziam o café da manhã.
Instintivamente lembrei-me de pronto do negrinho com sede e espantei-me ao ver seu leito vazio.
-- Onde está o menino? – perguntei, ansiosa.
-- O menino morreu bem cedinho, você estava dormindo. Descansou!
Senti um nó na garganta, uma vontade de chorar por aquele negrinho tão frágil, inocente, tão lindo...
Só havia algo que abrandava a minha grande tristeza. Algo que, em silêncio, eu disse a mim mesma:
Ainda bem que eu não lhe neguei seu último pedido!
José Ferraz de Almeida Júnior é um pintor brasileiro, autor de "O Negrinho". Nasceu em Itu, no ano de 1850 e faleceu em Piracicaba, no ano de 1899.
A dor é igual para brancos e negros. Somos todos irmãos.