O ciclo [conto]

Nasci para carregar caixas. É o que sei fazer melhor. O trabalho que sempre gostei de fazer. Percorro longas distâncias em pouco tempo. Proporciono segurança. Consigo suportar grandes pesos e intensas cargas de trabalho. Carrego caixa com a mesma eficiência no sol e na chuva. Sou bom mesmo nisso. Penso na hora de empilhar. Leio o que está escrito e decifro os símbolos. Não cobro muito. Não reclamo. Não atraso. Tenho experiência em porto, CEASA, distribuidora, beira de estrada, galpão sujo. Já carreguei caixa para muita gente. Sem nem saber o que tinha dentro. Tira daqui e coloca lá. Rápido. Objetivo. Eficaz. Há valores intangíveis aqui.

Aprendi a carregar caixas com meu pai, o melhor carregador de caixas que conheci. Ele tinha técnicas incríveis de equilíbrio. Carregava oito caixas de uvas de uma vez. Quando ele as erguia metade ficava acima de sua cabeça. Ele dizia que o segredo era segurar elas com os braços como se fossem garras e caminhar com os joelhos levemente arqueados para ampliar o centro de massa. Depois, na hora de baixar elas, ele as escorava numa parede, ou outra fileira delas, e ia escorregando as caixas lentamente enquanto também se abaixava até que elas levemente chegassem ao chão. Era lindo de se ver.

Carregando caixas ele criou três filhos, todos alfabetizados, numa casa onde diariamente minha mãe servia três refeições. Meu irmão mais novo preferiu ser médico, o do meio advogado, mas eu escolhi manter a tradição de carregadores de caixas da família. É uma coisa que está no sangue. As vezes meu pai gostava de contar a história de como meu velho Vô conseguiu vir da Itália para o Brasil carregando caixas. Ele trabalhava no porto da Sicília, e depois de carregar todo porão de um navio ele se escondeu entre as caixas, e quando o navio aportou em Santos ele desceu carregando as mesmas caixas. Ali mesmo ele se estabeleceu. Carregando caixas e sendo reconhecido por toda estiva como o melhor.

Depois das empilhadeiras elétricas tive que me atualizar. Todas as minhas artimanhas já não valiam de mais nada. Não era o meu sonho, nem o do meu pai, muito menos o do meu avô, mas tinha trocado a alcunha de carregador de caixas por operador de empilhadeira. Usava uniforme, luva, bota e capacete. Fiz cursos para me especializar. Descobri que empilhar caixas podia ser sinônimo de logística em alguns ouvidos. Que não se cobra por caixa carregada, mas por hora de trabalho. A expressão crescer na vida começou a fazer algum sentido para mim depois da primeira vez que fui promovido, de operador de máquinas para técnico de logística.

Admito que depois de receber meu primeiro salário turbinado minha paixão por carregar caixas foi em boa parte aplacada. Tinha um carro novo, aluguei um apartamento no centro, a geladeira cheia. Isso tudo somado a roupas novas e vinho tinto me fizeram ser um novo homem. Não demorou muito para conhecer a mulher da minha vida. Um domingo acordei com ela do meu lado, depois de uma noite de sábado homérica nos bares da cidade. Saí para comprar pão e quando voltei ela já tinha tomado banho, estava linda me esperando para se despedir. Convenci ela a ficar para o café da manhã e ela nunca mais foi embora.

Tudo era bonito. Casamos numa grande festa num grande salão de um hotel. Passamos a lua de mel em Fortaleza e fomos morar numa casa grande num condomínio da zona sul. Em pouco tempo as crianças começaram a chegar. Um casal lindo. Tomei um banho de conhecimento e fiz faculdade de administração a distância. No meio do processo ganhei um cargo novo, gerente de logística. As crianças me fizeram ver o mundo diferente. Pela primeira vez abri uma caderneta de poupança, e era para elas. Queria que elas tivessem todas as chances que não tive.

O novo posto de trabalho começou a exigir mais de mim. Reuniões, relatórios, happy hours. A vida começou a passar rápido demais. Os gastos cresciam na mesma proporção. Conta de luz, água, condomínio, escola, cartão de crédito, prestação do carro, da geladeira, da máquina de lavar, do videogame, do computador. Tudo se acumulava como poeira em cima do armário. Precisava de mais, alguma coisa que me desse tempo para curtir minha família e ganhar mais dinheiro. Estimulado pela empresa fiz um empréstimo no banco e fui ser empreendedor. Abri uma empresa de planejamento e logística e fechei um contrato de um ano com meu ex-chefe.

Nos primeiros meses as coisas foram andando meio engasgado. Notas, impostos, juros e custos se mostraram mais corrosivos quando saiam do meu bolso. Voltei para empilhadeira para economizar com funcionário e continuei trabalhando sozinho no planejamento. Tinha que furar a bolha dos 60% que não sobrevivem ao primeiro ano. Trabalhar sempre foi a solução e a igreja me ensinou que quem acredita sempre alcança. E eu acreditava. A bonança viria a cavalo para pagar as dívidas.

Enquanto esperava as contas se acumulavam e minha esposa voltou para casa da mãe dala com as crianças. Concordei que era melhor elas não passarem por aquilo. O banco tomou meus carros, minha casa e bloqueou minha conta. A empresa faliu e fui aconselhado pelo meu contador e o advogado e não ficar em casa para não receber as intimações. Estava tirando as últimas coisas quando um oficial de justiça apareceu. Ele perguntou pelo dono da casa. “Não sei. Só carrego caixas”, respondi.