Besouro rola-bosta de barriga para cima [conto]
Todo dia quando acordo parece que um ônibus escolar cheio de pirralhos mimados me atingiu em cheio. O zumbido agudo e atormentador na minha cabeça são eles rindo e fazendo chacotas da minha carcaça. Maldito mundo meritocrático de bosta. Não mereço isso Senhor. Leve para longe de mim essa pivetada guardiã da moral e dos bons costumes da oitava série do colégio cristão.
Vou ter que usar minha arma secreta. Conhaque com café e cigarros. Paz, welcome to my world. Você trouxe dinheiro? Não? Entendo. Não dá para ter paz e sorte. Falando nela, você tem visto ela por aí? Acho que ela não gosta do meu conhaque com café, faz tempo que ela não passa aqui. Bom, se ela gosta de champagne e caviar acho que não tenho muito a oferecer. Como assim você já vai embora? Você ficou tão pouco. Está certo, acabou o conhaque, mas ainda tem café. Tudo bem, passa no bar do Jaime depois do seu compromisso na Noruega. Urubus, no one is fuck welcome.
Tinha certeza que ela não ia passar lá, mas eu não podia me dar ao luxo de não levar os carniceiros para passear. Entrei no bar com cara de quem sabe que não tem dinheiro e precisa de um gole. O Jaime me olhava com cara de quem quer me matar. “E aí? Alguma novidade?” O inquisidor do balcão colocou um copo de água na minha frente e foi para a outra ponta arrastando o pau de amansar malandro que me olhava de canto de olho. A filha dele chegou do meu lado tentando me evitar, mas querendo ser vista. “Não quer me ajudar a conseguir algum dinheiro?” Ela me olhou com cara de nojo. “Jamais faria isso com você se você não quisesse baby.” Falei com ar de galanteador, ela só fez jeito de ‘tô nem aí’ e apontou para trás de mim.
Um velho estava no canto do bar lendo um livro e bebendo alguma coisa quente. Ele não parecia exatamente com alguém íntimo da sorte, mas dizia poder me dar umas migalhas dela a troco de esforço repetitivo forçado. “Você não parece aguentar o trabalho.” “Se eu fosse o que pareço estaria morto ou preso.” “Sabe onde é o galpão industrial abandonado?” “Sei.” “Esteja lá meia noite. São cem mangos pela noite de trabalho.” Bom, parecia que ao menos eu ia estar por onde a sorte costuma passar. “Bata três vezes e quando alguém perguntar quem é você diz que é o azul.” “Azul?” “É. Quer ser o pink?”
Cheguei cinco minutos atrasado, mas ninguém reclamou. Quando entrei me deram uma macacão azul e me mandaram ficar junto com a turma da minha cor. Eram mais quatro perdidos. Tenha a turma do macacão branco e a do macacão amarelo. Não tinham nenhuma regra sobre se misturar, mas a falta de assunto e a angústia por estar vivo nos mantiveram próximos pela frequência de onda que cada macacão emanava. Os brancos eram nitidamente viciados. Magros, com as pontas dos dedos queimadas. Os amarelos eram os desempregados fazendo um bico. Pais de família, fortes e com roupas limpas. Nós, os azuis, éramos os idiotas. Grandes, estranhos e bobos.
Depois de pouco mais de uma hora confinados no extremo oeste do galpão tinham uns dois amarelos cochilando e todos os brancos tremendo. O medo das migalhas de sorte escaparem pelos dedos crescia como um colônia de varejeiras no estômago. Alguém bateu na porta uma vez e o capataz perguntou: “Quem é?” Uma voz respondeu: “O pintor.” O velho do bar entrou, mas agora ele tinha um 38 na cintura e estava acompanhado de mais dois sócios. O mais almofadinha, que colocou um avental e veio na nossa direção, começou a explicar o que ia acontecer ali. “A equipe azul vai tirando toda carne de dentro dos caminhões e jogando no moedor. O time branco se divide em dois, uma dupla pega a carne e joga no misturador e a outra acrescenta as farofas que estão nos latões. Os amarelos vão tirando a massa do misturador e colocando nas formas. Quando as formas estiverem cheias levem para a câmera refrigerada. todo mundo entendeu?” “Olha só, os amarelos me parecem mais preparados para fazer a tarefa dos azuis, você não acha?” Os amarelos me fuzilaram com os olhos. O dono dos porcos para os azuis, depois para os amarelos. “Quem não conseguir trabalhar não recebe.” Me recolhi à minha insignificância e esperei a carga chegar.
O telefone do velho dono de porcos tocou e ele gritou. “Vamos lá, todo mundo no seu lugar.” Os ratinhos coloridos foram se espalhando, o portão se abriu e os sócios gritavam como macacos no cio. “Aí, aí, aí.” Dois caminhões entraram peidando no armazém e fomos os quatro azuis correndo em fila atrás do primeiro. Um sócio abriu o baú e o outro recepcionou o motorista com sorrisos e abraços. Eram caixas e mais caixas de hambúrguer, mortadela, salame, bacon e todo tipo de carne que pode ser vendida a vácuo. O sócio do sorrisos e abraços fechou a cara. “Porra, você não falou que estava tudo embalado.” “Foi mal.” “Achei que era carne podre de açougue de novo.” “Não. Eu disse do supermercado.” “Tem açougue no supermercado também, porra.” Os sócios iam precisar fazer mais do que reclamar e ficar com o lucro. “Vamos por a mão na massa. A galera do azul coloca a carne aqui e a gente desembala tudo e coloca no moedor.” O dono dos porcos não queria ser a gente e resolveu se manifestar. “Só pago o que estiver pronto.”
Movidos pelos prazo do nascimento do astro rei começamos com chibatadas e ritmo alucinado. Em dez minutos descemos uns quinhentos quilos de caixas. Talvez não tenhamos pensado bem na hora de empilhar elas. As que estavam embaixo começaram a estourar e molhar o chão. Não tinha lixo para o plástico, e eles se amontoavam do lado do moedor. Era como se tivéssemos empenhados em montar um chiqueiro. Espalhamos carniça fétida para todo lado, agora era só esperar os vermes fazerem sua parte. Quando o misturador tinha carne o suficiente para começar a rodar um dos brancos acionou a alavanca de comando. Uns barulhos de motor pronto para fundir, umas faíscas, as pás começaram a rodar e uma explosão do disjuntor anunciou o fim da operação. De dentro do baú vi os sócios e os azuis desabarem no chão. Um dos brancos estava travado com a mão na alavanca. Escutei a porta do galpão se abrir e vi uns vultos saindo pela escuridão. Fui atrás deles.