Pra frente é que se anda
Liguei para saber como estava indo, depois da separação. A voz do outro lado da linha me soou tranquila, o que era sempre um bom sinal. Mas, se eu bem me lembrava, aquela tranquilidade era quase marca registrada dela; dificilmente algo ou alguém conseguiria tirá-la do seu juízo. E no entanto...
- Eu vou vender a casa - declarou. - Na verdade, já pus um anúncio nos classificados.
A casa fora herança da mãe. Menos mal, pois assim não precisaria discutir a partilha com o ex.
- É uma boa casa... - ponderei. - Mas não acha que a época para vender está ruim? A situação do país...
Senti uma ponta de impaciência na resposta.
- Eu não vou viver pra sempre, Francisco. E a casa agora ficou grande demais para mim só. Os filhos cresceram e se foram, e agora o marido também. São muitas recordações... e não vou querer passar o resto dos meus dias alimentando-as.
- E já decidiu para onde vai?
- Vou voltar para Três Rios... é mais sossegado - comentou em tom resignado. - Comprar uma chácara, talvez. Ir criar galinhas, como minha avó...
- Partindo de você, isso soa quase como uma rendição - espicacei-a.
Detectei um princípio de irritação:
- Bobagem! Você fala como se eu quisesse ir me isolar do mundo... não se trata disso. Das pessoas, talvez. Ou melhor, do convívio permanente com as pessoas. Mas há telefone e Wi-Fi em Três Rios, fique tranquilo. Nós não vamos perder contato...
Eu sabia que aquilo era somente meia verdade, mas resolvi não contrariá-la.
- Minha preocupação é você sozinha num sítio em Três Rios - declarei. - Na cidade, pelo menos, há vizinhos próximos... pessoas com quem você pode contar num caso de urgência.
Fez-se um curto silêncio. Finalmente, ela disse:
- Quando eu for, não vou estar mais sozinha.
Ela já havia encontrado alguém assim, tão rápido? Achei estranho.
- Eu já havia tomado essa decisão há alguns anos, mas Alfredo não estava interessado. Agora que não estamos mais juntos, vou por em ação...
Uma nota de otimismo transpareceu em sua voz.
- Vou adotar um casal de irmãos. Ela, 11, e ele, 10 anos. Como jã estão grandinhos, poderão se cuidar... e também de mim, quando eu ficar mais velha.
- Você vai começar tudo de novo, nesta idade? - Inquiri.
Ela riu.
- Está me chamando de velha?
- De modo algum... mas a sua missão já não foi cumprida quando seus filhos saíram para viver as próprias vidas?
- E quem disse que não posso começar de novo? - Desafiou-me ela. - E fazer do meu jeito, sem Alfredo para me contradizer?
- Analisando por esse ângulo...
Agora, ela me soou francamente triunfante.
- Afinal, eu sou professora... e entendo que a minha missão neste mundo só termina quando me faltarem forças. Por que não me dedicar a formar outras crianças... e sem a interferência do Alfredo?
Alfredo, o severo, o reacionário... como seriam os novos filhos de minha amiga, livres do espírito opressor, não mais presente?
Era uma aposta que eu não fizera, mas que gostaria de ver cumprida.
- [02-11-2017]