Mundo azul, cabelos grisalhos e caixões

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Mundo azul, cabelos grisalhos e caixões

A vida pulsa.

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Todas as gavetas do escritório de Raynaud estão abertas. Há papéis, algumas correspondências e documentos espalhados sobre a escrivaninha; os armários foram jogados ao chão. À direita, no canto, ao lado da tela do computador, alguns comprimidos de cartela recém-violada. ‘Desde quando ele usava isso? Por que nunca me falou nada? – pensava Marrieh Clair. Na noite anterior, ela e o marido estiveram ali e se amaram. Ele a deixou em casa, mas retornou ao escritório, sem dar explicações... Até que ligaram do hospital.

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Além, para muito além do princípio, tudo ficaria azul. Na terra, depois do vazio e das trevas que arremessavam homens para o abismo do medo, descobriu-se o azul. Acima, no firmamento, a presença da atmosfera transmutou a paisagem, surgindo o azulado céu, rodeado de estrelas e circundado pelo Sol, no eterno flerte que possui com a inspiradora e poética Lua. Água, céu e infinito se curvariam diante da anileira, a nova árvore do pecado – pecaminosa e pecadora, não em razão dos frutos, mas da cor que gesta, dentro da essência perceptível.

Os astros pressentem o calor dos tempos. Num eclipse, a Lua se avermelhou a olhos nus, sendo contemplada aqui da Terra. Desposara – ela e o marido, o Sol, descerraram os véus do firmamento, cerraram as pálpebras da curiosidade humana e se fecharam, buscando privacidade. E da intimidade que brotou houve turbilhonamentos e explosões, fúria do amor. O céu ficou cheio de saudade, brindando a união dos astros que dormiriam em conchinha, num sublime enlevo.

No mundo que se formou milhões de anos após a criação, havia tranquilidade, profunda harmonia e serenidade; mas, também, extrema frieza, requintada monotonia e generalizada depressão.

Os homens estão mais longevos. Estamos propensos ao retorno de incontáveis matusaléns, inebriados num dilúvio azul de pílulas milagrosas! Da perspectiva de vida em torno dos 63 anos, evoluímos para 72 e o homem do futuro estima alcançar idade média de 78 anos, num futuro não tão distante quanto o que nos separa da gênese humana. Seria a realeza do sangue azul, a idade do cetim, agrisalhada pelas mechas do tempo. O azul, aquela tonalidade que se relaciona à diminuta circulação, à redução da temperatura corpórea e à baixa pressão arterial, todavia, esvaiu-se e se degelou.

Tempo, bola de vento... Tempestividade. Tempestades. A roleta girou, parando em 1951, outubro. A pílula, tornada pó, brincou com o poder da criação; a fertilidade conheceria, em escala mundial, sua primeira grande barreira – manifestação humana, interferindo na divina criação. O tempo voou nos contrapesos das leis, balançando estruturas e comportamentos. Fez-se a libertação, proliferou-se a libertinagem... E o Onisciente a tudo assistia, contemplativo e sereno. Pílula branca, o branco da paz. Paz que assassina e sangra, manchando de sangue os límpidos panos, cetins, em tons de candura, dos leitos contaminados pela ação destruidora da vida. Há vidas que choram. Há vidas que clamam... E vidas que extrapolam limites, com a entrega da pétala ao varão. Lençóis brancos. Vermelhidão do sangue que jorra das entranhas. Vida e morte, sussurros e lágrimas – guerra armamentista, reprodução em escala da pílula da paz conceptiva.

A caça, recém liberta, ataca o caçador que recua. O mundo parece cinza. Nuvens, temor. Existe pânico entre os guerreiros. Novamente, o céu se transforma e toma contorno de diamante, em tom de azul niágara. A temperatura cai e o mundo, antes aquecido, resfria-se. Friagem temporária demais. De repente, o frio dá lugar ao estresse e as mãos de Raynaud suam, descolorindo-se, gradualmente, em tons de branco, azul e vermelho. O pobre empresário está morto. Aos sessenta e seis anos, há dois convivia com Marrieh Clair, modelo de apenas vinte e dois. Da relação, nasceu Maurice, de apenas seis meses.

Como entender a morte desconhecendo-se a vida?

Raynaud era homem saudável, desportista, de vida ativa, cheio de energias – adorava lutas marciais. O tempo, entretanto, é imponderável. Alheio ao curso natural do caminhar existencial, o sexagenário desejou amar, revigorando as buscas e conquistas afetivas. A viuvez, a solidão, o ávido desejo de ser feliz, a ânsia de viver, enviaram-no a noitadas, festas, badalações. Numa dessas libações, depois de trocarem olhares curiosos, Marrieh e Raynaud decidiram conversar. Minutos. Horas... Brotaram desejos, muitos dos quais limitados em razão do tempo – a dois e de vida. Homem velho e rico; mulher nova e linda. Amaram-se e decidiram continuar juntinhos.

E o coração do velho homem, em tons de azul, parou de pulsar.

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A vida pulsa!

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Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 01/11/2017
Código do texto: T6159250
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