Conto das terças-feiras – Deusdete e Benedito
Gilberto Carvalho Pereira, Fortaleza, CE, 31 de outubro de 2017
Deusdete e Benedito, dois motoristas de carro de praça, na década de 1950 nos atendiam, alternadamente, em nossos passeios por praias e outros lugares aos quais nosso pais nos levavam.
Deusdete era um senhor calvo, atarracado, que usava óculos e andava sempre com a cara fechada. Trabalhava de terno, quase sempre branco, e uma gravata normalmente vermelha e amarrotada, mas nenhum lhe cabia bem, talvez pela grande barriga que ostentava. Dificilmente sorria, era muito sério, quase não abria a boca para falar, mas era de uma gentileza fora do comum. Só ficava aborrecido quando alguém sujava o carro no qual trabalhava, um Ford Customline Deluxe, ano 1952, na cor verde escuro. Embora não fosse o proprietário era o seu instrumento de trabalho. Com o “seu verdinho” ele sustentava a família; uma mulher e oito filhos.
Com trinta anos dirigindo veículo automotor, profissional altamente competente, nunca havia cometido uma infração de trânsito. Pela performance, ganhou do Serviço Estadual de Trânsito do Ceará a distinção “o melhor chofer do ano de 1952”. No dia seguinte à premiação, por distração, bateu o carro que dirigia, com sérias consequências para o veículo e para a sua saúde, recuperando-se três meses depois. Ele atuava no Posto Vitória, que tinha como proprietário o sr. Álvaro Mendes Mota, localizado na Praça do Ferreira esquina da Rua Floriano Peixoto, junto do Abrigo Central. Do outro lado da praça contávamos com a Lanchonete Leão do Sul, famosa por vender pastel e caldo de cana.
Ele tinha mais ciúme do carro do que da esposa e dos filhos. Nosso pai nunca o chamava para nos levar à praia, pois ele detestava areia em seu veículo. Uma corrida, como eram chamadas as viagens de carro de aluguel, eram acertadas entre o motorista e o passageiro, não havia taxímetro e nem contador da quilometragem. Deusdete só aceitava viagem pelo perímetro urbano e só em ruas calçamentadas.
Já o senhor Benedito, de altura mediana, acaboclado e com olhos verdes esmaecidos, elegante, vestia-se, impecavelmente e invariavelmente, de paletó e gravata, em tons meio-escuros. Vivia sorrindo e mostrando seus belos e perfeitos dentes brancos. Quando ele chegava em nossa casa, sempre brincávamos, perguntando: “será o Benedito?”, expressão popular surgida na década de 1930, em alusão à demora e a surpresa da escolha, pelo Presidente Vargas, do nome de Benedito Valadares para o governo de Minas Gerais.
Bastante amável e paciente, gostava de abrir as portas para entrarmos. Fazia mesuras quando nossos pais entravam em seu carro, e sempre dizia:
— Madame, entre por favor. - apontando a porta dianteira.
— Patrão, por aqui. - indicando um lugar ao lado de nossa mãe. Em ambas as ocasiões, ele se curvava como se fosse um japonês.
Diferentemente do senhor Deusdete, nosso pai sempre o chamava quando o passeio era para a praia. Ele até levava calção, que trocar pela indumentária clássica de motorista, na casa de algum pescador-morador, para tomar banho junto com a nossa família. Geralmente ficávamos até o meio da tarde. Na companhia de seu Benedito, fazíamos as nossas refeições, preparadas pela nossa mãe e que, segundo ele, eram as mais gostosas. A companhia dele era bastante divertida, pois ele nos vigiava quando estávamos na água, sempre fazendo graça. Foi ele que ensinou a dois de nossos irmãos a nadar. Talvez toda essa dedicação era porque ele não tinha filhos.
Quando viajávamos com qualquer um dos motoristas a briga para quem sentaria nas janelas sempre acontecia. Embora nosso pai já tivesse orientado que deveríamos seguir o rodízio determinado por ele, ninguém fazia questão de relembrar quem viajou pela vez anterior, na janela. Nosso pai nunca lembrava quem foi, assim, só depois de alguns minutos e acordos, o veículo iniciava sua marcha, primeiramente lenta, para acomodar as crianças mais afoitas, os mais mandões.
Seu carro era um Chevrolet Sedan Deluxe, ano 1952, preto. Igualmente ao senhor Deusdete, ele também tinha muito ciúme do carro que dirigia. Trabalhando para o Posto Pará, empresa que contratava choferes profissionais altamente habilitados, zelosos e corteses, ele se orgulhava de dizer que nunca trabalhara para outro posto, aposentando-se aos sessenta e cinco anos.
Naquela altura, éramos uma família de oito pessoas: dois adultos, nossos pais, e seis crianças, variando na idade entre 13 e 5 anos. Nossos pais e mais nossa irmã viajavam sempre na frente, ao lado do motorista, que respeitosamente se encolhia todo. Minha irmã viajava espremida entre mamãe e papai. Não era proibido utilizar-se desse expediente.
Os veículos da década de 1950 eram espaçosos, tinham os bancos da frente inteiriços, cabendo muito bem dois adultos. Não havia o freio-de-mão e a alavanca das marchas dividindo o banco em dois. A alavanca de passar as marchas (o chamado câmbio Royal) ficava acoplada ao volante e o freio de mão embaixo do painel, no lado esquerdo.
Os meninos se acomodavam, depois de decidido quem viajaria do lado das janelas, no banco de trás. Daí em diante a viagem transcorria tranquilamente. Quem estava nas janelas contava quantas bicicletas passavam do seu lado; os menores eram os fiscais nesta contagem. Às vezes, dava discussão, os fiscais não eram muito atentos e os competidores fraudavam os números. Se o passeio era longo, dormíamos na ida e na volta, e não havia brigas.
Quando acordados, os pequenos enchiam o seu Benedito de perguntas. Quando ele não respondia, perguntávamos novamente. Nossa mãe dizia para não o perturbarmos e nosso pai interferia, procurando dar respostas para às nossas curiosidades.
Esses passeios de carro eram sempre divertidos. Nosso papai não tinha carro e se valia desses dois excelentes motoristas, pela confiança e por conhecê-los de longa data.