A história de uma ex-criança.
Dei cambalhotas junto ao Dirceu e logo após deram-me uma moeda. Aquilo foi sensacional, sorria-me a alma ao girar percebendo ora céu, ora chão. Logo após a sucessão de rodopios estendi as mãos por entre as frestas dos vidros, e novamente deram-me moedas e eu as girava pondo-as em cambalhotas, no jogo de cara e coroa. Dirceu desfilava com punhados de moedas e até notas saltitavam dos bolsos. De repente, apareceu um senhor velhinho, quase como o senhor que está aqui agora a me ouvir. Então ao ver...
- Espere! Não sou tão velho assim garoto. Ainda frequento a praça sozinho e estou lhe ouvindo muito bem.
Sei disso, o fato é que este senhor mais velho do qual eu falava, olhou com atenção meu número “cambalhozístico” de criança e baixou todo o vidro. Disse ele que, moeda não trazia consigo, estendeu-me a mão e apertou-a dizendo: meus parabéns, belas cambalhotas!
Ao ver o quanto minhas lágrimas de imediato jorravam, o homem assustou-se e arrancou, mesmo antes do sinal esverdear-se. Igual surpresa foi a minha! Soluçava e dizia a Dirceu que meu choro era consequência de um pneu sobre meu pé. Dirceu não se convenceu muito disso, pois, sequer fiz menção de mancar... Apenas chorava.
A noite se ergueu. Minha primeira noite em companhia da noite. Dirceu apontou-me uma marquise e sumiu... Dormi com a noite e nela entendi o porquê do choro. Minhas cambalhotas não queriam moedas, lembrei devagarinho, encolhido, que toda vez que minhas mãos esticavam-se por entre as frestas dos vidros eu tocava a mão que se esticava para remunerar meus rodopios no ar. Era este meu desejo, o aplauso, o respeito, a admiração de meu talento de girar no ar. Aquele aperto de mão condensou tudo num só gesto e então chorei sem saber o motivo. Naquela noite entendi o que aquele fato disse ao meu coração e pela primeira vez sorriu-me a alma.
Nunca haviam apertado minha mão. Antes do significado daquele gesto, antecipou-se a emoção envolvida no toque de uma mão agradecida com outra estendida e ávida por moedas. Enfim, a primeira noite na rua me dizia que eu girava em cambalhotas por apertos de mão, olhares, um toque... Parei de girar.
Dirceu apareceu três dias e três noites depois, convidando-me para dar cambalhotas no sinal, expliquei a ele que só nos davam moedas e não respeito. Riu e
chorou de rir... Disse que com muitas moedas é que se ganha respeito e por fim deu-me algumas moedas, não sei se por pena ou por respeito. Eu estava com fome e naquela hora pouco importava o significado sentimental da moeda. A fome passou, seguida de dias infantis e noites adultas: a noite não gosta de crianças, a rua não gosta de crianças.
- Porque diz isso? Você ainda é muito novo, apesar de morar na rua por certo sabe muito pouco dela. Quantos anos têm?
Basta que o senhor saiba que na época eu tinha 10 anos. E na alegria do passeio em minha bicicleta com muito esforço roubada, detive-me junto à grade de um parque. Várias crianças, sorrisos, cambalhotas no ar, rodopios melhores que os meus e o mais estranho... Nada de moedas! Aplausos, abraços, apertos de mão, afagos nos cabelos. Percebi que não existiria noite para quem vivesse aquele dia.
Com a rapidez infantil, um garotinho disparou, aproveitando o descuido de sua mãe e chorou imediatamente quando deu com os joelhos no ferro do escorregador. De repente, cercaram-no, sua mãe beijava-lhe a testa enquanto retirava de sua bolsa um frasco e aplicava no joelho do garoto que, enrugava a testa beijada diminuindo vagarosamente o choro. O que era aquilo? A vida era confusa e naquele momento enublou-se ainda mais. Saber que a dor proporcionava: o toque, o afago, o aperto de mão, o respeito, tudo o que eu queria. Aquilo era dor, só que dor acompanhada e, talvez, seria isso o até então por mim desconhecido: amor.
Procurei não perder tempo, montei com ferocidade na bicicleta procurando o ângulo perfeito para ser acompanhado pelos olhares em minha queda espalhafatosa. Caí de ombro, cabeça, boca, joelho, esfreguei aquilo que pude no asfalto e ainda tonto, ensanguentado, estava pronto para receber afagos, apertos de mãos, abraços e tudo o mais. Senti que todas as mães do parque vinham em minha direção e meus olhos brilhavam, ao ver os olhares de ternura. As vozes das mulheres iam se afinando em respeito a mim.
Um repentino tranco em meu braço... Fui levantado com aspereza! Era um homem e dizia em tom sério que eu era um ladrão e que aquela bicicleta a ele pertencia. Os olhares de ternura sumiram magicamente, as mães transformaram-se em senhoras com dedos ágeis aos celulares em ligações simultâneas para a polícia. Não conhecia a polícia, senão de nome, tampouco conhecia o significado de um roubo. Não sabia que seria tocado daquela maneira pelo dono da bicicleta, era tudo novo, e novamente pus-me a chorar.
A polícia levou-me sem nada dizer e fiquei aliviado em sair da mira daqueles olhares maternos. Alívio de poucos minutos, pois, um pé policial pisava sobre minha cabeça repetidas vezes e quando cessou por um instante, ergui a cabeça com o que restava de minha esperança de criança e mostrei a ele o quanto sangrava e doía. Esperei que aquele policial ao ver-me em tal estado, de mim cuidaria, assim como as mães do parque cuidaram do menino dos joelhos ralados. Junto da esperança pareou o medo e logo... foi só medo que senti.
Ainda não era noite, mas pude entender que aquela dor não seria cuidada. Pesou a força do pé novamente em minha cabeça e com aquele pé a esmagar-me senti o peso da moeda, do parque, do dono da bicicleta, da noite. Certa vez esmaguei algumas formigas em um dos tediosos dias na rua, tentando entender o que se passa na cabeça de quem já me pisou. Tão distante eu estava... Tão superior às formigas, esmagando-as sem dor, sem remorso, sem culpa. Entendi que não pertenço ao mundo delas e nossa relação tem apenas uma vontade: a minha!
Às vezes divago na companhia de minha noite e fico a imaginar quem poderia ser indiferente aos indiferentes para comigo. Quem poderia pisar na cabeça pertencente ao pé que me pisa? Divago e penso numa força alienígena com o pé enorme e com a indiferença do mesmo tamanho a pisar e pisar nos pisantes de mim. Tenho esta vontade de vingança e paro a pensar noturnamente. Por fim, percebo que não só vingança é o cerne de meu desejo. Quero poder conversar com o pé que me pisa e perguntar-lhe a sensação que ele sentiu ao ser pisado. Quem sabe, se ele tiver sido pisado entenda-me, aperte a minha mão, me abrace.
- Como uma criança pode dizer coisas assim?
Não se assuste senhor, não há mais uma criança a lhe falar, de tanto a noite passar, passou-me a infância.
- Quantos anos você tem? Responda-me!
A idade da noite.