O futuro vindo depois da curva [conto]
A merda toda tá acontecendo. Este momento de espera é uma bosta. Tem gente que nessas horas fica pensando em como tem o pinto pequeno, que a amante tá metendo com outro que tem um pinto gigante, que se a receita tiver poder de polícia fudeu, ou qualquer outra merda que resuma a existência a algo vergonhoso. Pessoalmente, prefiro pensar em paz e tranquilidade num quarto aveludado e com NetFlix. Cigarros, baseados e coca-cola até o corpo simplesmente desistir de sustentar uma mente tão bem acomodada. “O cara não tá gostando não. Tamo brigando pra não precisar refazer tudo desde o conceito, mas tá foda.” Entrei no banheiro com o Walter reclamando da eterna batalha entre quem recebe para fazer e quem paga para contestar. “Refazer tudo? Do zero zero mesmo?” Pinto, mulher, imposto. Vou me matar porque não quero repensar uma campanha inteira de troca de óleo. “Ele quer animações como no filme da Disney.” O Walter bateu duas carreiras na pia do banheiro. Cheirou a primeira. “Sério? Ele citou Disney?” “Uma coisa tipo Speed Race, sendo literal.” Cheirou a segunda. “Apela. Fala de Geração Z, publicidade interativa, sei lá.” “Meu nariz tá limpo?” “Tá.”
Quando entramos no carro o clima de velório era indisfarçável. Filmes, teasers, brigas e quase metade do orçamento. Tudo morto, e o cliente queria ver o enterro em desenho animado, um carrinho feliz e sorridente trocando o óleo enquanto come hambúrguer com fritas. “Conseguimos salvar o conceito. A gente pega o que a gente tem, passa para um freela de animação como briefing e manda ele criar um filme de 30s. Assim, do jeito que o cliente quer.” Terceirizar é sempre uma boa solução. “Sei para quem a gente pode mandar isso, aquele moleque que fez a animação do nosso logo no evento de Recife.” Já tenho trinta e poucos, não sei se estou afim de enfrentar esse tipo de merda. O sonho tinha evaporado. “Depois vai ter que refazer todo o material promocional com um material de vídeo? Desenho das imagens em vetor, banners, tudo?” “Também vou ter que acordar arrependido amanhã para aceitar isso.” Quando era pequeno, no Colégio Virgem Rosa Maria, todo mundo me dizia que se estudasse, me dedicasse, fosse persistente, eu venceria. Acreditei nisso. Tenho diplomas na parede e até uma estante de troféus. Bando de salafrários. “Já estou arrependido. Devia ter feito um curso de torneiro mecânico no Senac e inventado alguma coisa revolucionária como uma mangueira que encolhe como um pinto murcho.”
Passamos pela boca da zona sul e pegamos pó para arrebentar o nariz. Deixamos o Walter no estacionamento da agência e eu e a Rosana fomos para casa dela. Nos meus melhores dias da adolescência pensava que com 30 anos teria uma casa grande, mulher e filhos, carros na garagem. Ia trabalhar numa coisa grande, onde eu ia ser vital e fazer reuniões. Todo mundo ia ter orgulho de mim. Não foi assim. Moro num buraco enterrado num quarto andar de um prédio sem espelhos e tenho que aceitar a análise crítica de cretinos sem ao menos poder me defender. “Olha, o Walter é meu sócio, era função dele estar lá.” “O Walter é um idiota que ainda acha que é só anunciar no Jornal Nacional que vende.” Meu caso com a Rosana é crucial para se entender como funcionam as engrenagens da sociedade pós-moderna. Fui recrutado como redator-júnior de uma grande agência de publicidade, da qual ela era gerente de contas. Nesse tempo eu namorava a Dandara, que me convenceu, a base de chantagem emocional e Rivotril, a ir numa casa de swing apimentar nosso relacionamento. Fui surpreendido por uma coroa que tratou meu pau como nenhuma outra mulher tinha feito. Não queria nem saber quem estava fodendo a Dandara. Era impressionante ver aquela mulher dedicando aquela quantidade de energia numa chupada. A gente se cruzou na agência uns dias depois, em um ano eu tinha sido promovido a diretor de arte e transavamos como animais em convulsão regularmente. Ela e o Walter, que também era gerente de contas, roubaram dois clientes da big one para abrir a própria agência. Pedi as contas, fiz um bom acerto por fora, investi a grana em bitcoin, e entrei nessa barca como o cara que manja de imagens, acredito eu, e esta comendo a toda poderosa, diriam outros.
A atitude natural a se tomar depois de cheirar, meter e beber como se houvesse algo a se comemorar pareceu ser ingerir um comprimido de alprazolam e acender um baseado. “Tudo bem, os custos vão aumentar um pouco, mas a gente ainda está ganhando muito.” Isso é aceitar os fatos. No fim tudo se resumia a orçamento, líquido, bruto, tributável e caixa 2. “Ok, mas se é pra ser qualquer coisa que o cliente quer porque pesquisa, reunião, conceito, produção? Manda tudo para o cara do Recife.” “In a world that's full of shit and gasoline, baby, nas palavras de Josh Homme.” É difícil manter uma conversa linear com tanta coisa tentando fazer efeito na cabeça. “Colocado isso, o que significa manter o serviço de telemarketing que atende nos EUA operando em Nova Deli?” “Que é mais barato ensinar um indiano a falar inglês e pagar a ligação internacional?” “Eles precisam se sentir superiores. Seja lá quem for que estiver atendendo eles, eles precisam se sentir superiores. É bem mais fácil se sentir superior a um indiano que não sabe com quem está falando do que a um americano que sabe que do outro lado da linha tem um idiota.” Já não tinha a menor ideia de que rumo a nau tinha tomado. Sentia que estava a deriva.
Peguei um táxi e no caminho fiquei pensando no quanto de bosta um atendente de telemarketing indiano escuta de um Steve sei lá o que de uma field qualquer do interior que não consegue conectar a impressora no computador porque não sabe o que é um cabo USB. “There is no one fuck USB cable in the pack!” Não quero ser um atendente de telemarketing indiano. Cheguei em casa, dei um último tiro enquanto o computador ligava e comecei a procurar concursos para caixa do Banco do Brasil.