Memórias mortas não movem as paisagens
Tantos anos atrás...
Não anos, mas séculos. Já nem sei discernir bem a passagem do tempo, mas posso garantir com uma certeza quase total que já se foram séculos inteiros; escorreram como terra numa ampulheta e não havia uma mão aleijada sequer que pudesse virar-lhe a fim de fazer a areia continuar a correr.
O riacho que aqui ao lado corria já secou a tanto; o leito está cheio de terra, é quase impossível notar as marcas de erosão das águas correntes.
Do grande cajueiro com galhos longos e de copa cheia, morto há muitas eras, não sobrou nem mesmo a folhagem seca atapetando o chão. Só há terra.
O casarão que abrigou famílias de uma geração a outra se estende ao sol; a chuva, ao vento e ao nada. As paredes nuas e abrindo-se em fissuras, o teto esburacado que lembra bocas com dentes careados e destroçados. As portas tortas e presas em dobradiças envelhecidas que já não se abrem e tem grandes rasgos na madeira, como olhos negros por onde um passado há muito morto me espia da escuridão. É quase como se pudesse me ver. Mas não vê; estou tão morto quanto tudo que um dia ali existiu e a lembrança do que sou e do que vivi ali me mantém aqui, firme como um pedregulho que preso ao chão, impossibilitado de desapegar, de ir para longe e não obstante desejoso de ali permanecer.
A casa está torta como um velho cansado, curvada sobre si mesma.
O sol nasce e morre nasce e morre nasce e morre e enquanto vejo seu brilho decair para se erguer de novo e de novo e de novo sinto a infelicidade que só um ser condenando a vagar pela eternidade poderia sentir. Viver para sempre talvez tenha sido um desejo do que homem que um dia fui, hoje, entretanto... Não há felicidade nesse ato; há caminhos longos demais a serem seguidos, tortuosos que cansam a alma e o coração. Mas oh! O coração já não há; desfez-se em areia e escorreu pelo gargalo da ampulheta; de grão em grão, do pó ao pó.
E tudo agora é apenas pó: já não há casarão desfazendo-se em ruínas velhas e decrépitas; não há azul do céu como ultimo consolo pra se avistar. Não há nascer nem por do sol.
Só areia que já me chega ao peito e uma friagem escura e acolhedora a me embalar.