Conto das terças-feiras - O trem e o meu avô Pereira
Gilberto Carvalho Pereira, Fortaleza, CE, 24 de outubro de 2017
Sempre fui um apaixonado por trens. Esta paixão, acredito eu, vem do tempo das viagens que fazíamos, meus irmãos e eu, juntos com meus pais, para Maracanaú, território que, na época da chegada dos primeiros europeus ao Brasil, tinha como habitantes os índios Pitaguaris, Jacanaú, Macunã e Cágado. O nome geográfico original "maracanaú" vem da língua tupi, significando rio das maracanãs (aves psitaciformes, em que incluem os papagaios, cacatuas, periquitos e outras) que costumavam banhar-se na lagoa local.
Maracanaú tornou-se distrito de Maranguape em 1906 e foi emancipada somente em 6 de março de 1983. Hoje, a cidade pertence à região metropolitana de Fortaleza, com população atual de 224.084 habitantes (IBGE/2017), muito diferente da época da história que vou contar.
Nossa ida para Maracanaú acontecia entre os meses de junho e julho, década de 1950, quando a temperatura média alcançava os 25ºC. Fazíamos o percurso de ida e volta sempre de trem, uma Maria Fumaça da Rede Viação Cearense. O trem saía da Estação João Felipe e deslizava pelos velhos trilhos de aço assentados em 24 quilômetros de extensão, até a estação Maracanaú, cantando o estribilho: “café com pão/café com pão/bolacha não”, todos nós repetíamos: “café com pão/café com pão/bolacha não”.
Antes da viagem meu pai passava em uma padaria e comprava biscoitos e pão bem quentinho. Alguns de nós comíamos biscoitos e outros preferiam um pedaço de pão. Era uma viagem para mais de uma hora, pois a locomotiva a vapor andava devagar e parava em algumas estações, demorando mais no Mondubim.
Ao chegarmos próximo à estação de Maracanaú corríamos todos para as janelas, ansiosos para ver o nosso vô Antônio Pereira, cabecinha branca, já em idade avançada, sentado em uma cadeira de balanço, na calçada em frente à casa onde ele gostava de passar os meses mais frios da cidade, fugindo do calor e da agitação de Fortaleza. Vestido em um pijama listrado, com linhas verticais, mangas compridas e calça também, costume daquele tempo, ele se balançava tranquilamente. Acho que tinha apenas três pijamas, o de listra azul, o de listra marrom e o de listra verde pálido.
Ao passarmos em frente à casa dele, acenávamos e gritávamos o seu nome e já pedíamos a bênção. Causávamos uma verdadeira algazarra, ao que ele respondia com aquele sorriso fácil e, levantando as duas mãos, acenava para todos nós. As duas mãos levantadas pareciam dizer que ele não queria deixar nenhum neto sem receber a sua atenção. Ficava assim até o trem parar na estação.
A casa do avô Pereira ficava bem próxima da estação, nesse ponto, o trem apitava três ou quatro vezes e soltava uma lufada forte de fumaça, que agitava mais ainda todos nós. Era uma alegria só. Para facilitar a nossa chegada mais rapidamente até a casa do vovô Pereira, nosso pai escolhia entrar sempre no último vagão da locomotiva, pois iriamos até a casa dele a pé.
Em nossa chegada a casa, éramos recebidos com outras formas de carinho: abraços, tapinhas, leve puxão de orelha, que não doía, e saquinhos de bombons. Era uma festa. Os demais da casa vinham ter conosco e não paravam os elogios. “Como eles cresceram”, dizia um. “Estão bonitos e bem arrumados; gosto de crianças assim”, dizia outro. “Vamos acomodar vocês nos quartos, pois daqui a pouco começa a escurecer”, falava vovó Marieta.
O ambiente era modesto, tinha uma grande mesa na cozinha com mais de dez cadeiras, o fogão era a lenha e a água de beber guardada em pote de barro, que a mantinha sempre fria. Dormíamos todos em rede, e cedo. Apenas a nossa avó Marieta dormia em cama. À noite, a casa era iluminada por velas de cera e Petromax, variedade de lampião que funcionava a querosene, com camisa de seda em forma de lâmpada. Na cozinha, sempre ficava acesa uma lamparina, utensílio pequeno feito de latão com um pavio de cordão, colocado no bojo da lamparina, cheio de querosene.
Havia também várias cadeiras de balanço que ficavam na chamada sala de visita. Nessa sala, havia um toca-discos, à manivela, que pertencia a um primo chamado Pedrinho, que apresentava sinais de deficiência mental. O seu único divertimento era ouvir música e nosso pai sempre levava um disco para dar-lhe de presente. A alegria dele era contagiante, todos nós ríamos com ele. Em seguida ele pegava o disco, colocava no toca-discos, ajustava a agulha no primeiro sulco impresso no material magnético, rodava a manivela e ficava ouvindo a canção gravada. Se fosse do agrado de Pedrinho, ele repetia continuadamente essas ações por mais de três horas, até alguém gritar que ele iria furar o disco caso não parasse.
Havia ainda as nossas tias, irmãs de nosso pai. Tia Maria Adélia e tia Eridan, as solteiras que sempre acompanhavam vovô e vovó nessas idas para Maracanaú. Elas também distribuíam agrados aos sobrinhos. Embora não tivéssemos ideia ainda do que era tristeza, sabíamos perfeitamente como eram os momentos de alegria em nossas vidas. As nossas estadas em Maracanaú transcorriam maravilhosamente, fazíamos visitações a sítios, passeávamos na pracinha, ficávamos na calçada esperando o trem passar para ouvir o seu apito e vê-lo soltar as baforadas de fumaça, jogávamos bola de meia na frente da casa debaixo de uma mungubeira. Às vezes nossos pais nos levavam até à estação do trem, para ali ficarmos observando o movimento de quem chegava e de quem partia para outras cidades.
Chegávamos por volta das cinco e meia da tarde de sexta-feira e o retorno se dava às quatro horas da tarde do domingo. Todas as crianças voltavam dormindo, cansadas, mas alegres e satisfeitas.
Estas são as memórias que ainda estão muito vivas em mim.
Outro dia passei (de automóvel) por essa cidade que povoou minha infância. O tempo e o “progresso” haviam destruído as lembranças, não ouvi mais o apito e o resfolegar do trem passando devagar e não encontrei o pé de munguba que nos presenteava farta sombra a nos refrigerar durante as renhidas partidas de futebol de bola de meia. Nada identifiquei, nem mesmo a casa de onde meu avô Pereira nos acenava e nos sorria com aquele sorriso leve e cheio de sabedoria.
Hoje eu canto aquela música de Roberto e Erasmo Carlos: “Eu me lembro com saudades do tempo que passou, o tempo passa tão depressa, mas em mim deixou ... tantas alegrias. Velhos tempos, belos dias!”