O DESTINO MARCA A HORA

Nessa manhã surgiam os primeiros raios de sol quando Aníbal saiu de casa para fazer mais um périplo de acordo com os anúncios de emprego do jornal da véspera. Anteriormente, fora a dois endereços mas não conseguira nada... « é muito velho - disseram-lhe...». Velho, ele que ainda nem cinquenta e seis anos fizera...

A empresa onde trabalhara durante trinta e dois anos como operador de máquinas tinha falido e deixara ao abandono mais de cem trabalhadores. Há mais de um ano que essa situação prevalecia e os colegas da mesma idade também estavam em situação idêntica, as esperanças de se empregarem de novo eram exíguas. Ainda eram muito novos para se reformar pelo que não tinham outra alternativa que não fosse tentar a sorte.

Aníbal ia todas as semanas ao Centro de Emprego, a ver se havia alguma novidade que se lhe adequasse... Mas não era o único, a competição feroz e os poucos empregos compatíveis acabavam por ser atribuídos a homens mais novos, pouco mais que jovens. A idade deles possibilitava economia nos salários, as empresas aproveitavam todas as chances de poupar dinheiro.

Maldisse o seu temperamento... Com um início de tuberculose a miná-lo, o seu mau feitio fizera afugentar a família, a mulher separa-se por não querer suportar mais o irascível marido e a filha juntara-se com um colega de fábrica e abalara para outra cidade distante.

Vivia num quarto, solitário e em condições quase miseráveis. O subsídio que recebia da Segurança Social, que nem sempre era pago a horas, mal dava para sobreviver e o prazo de ano e meio terminaria dentro de três meses. E depois, como seria? Iria viver na rua? Sobreviver na sopa dos enjeitados e dormir num qualquer albergue cheio de percevejos?

Por vezes, quando estava deitado na sua velha cama de ferro e fumava um cigarro dos mais baratos, lamentava ter deixado que a sua Custódia, que tanto lhe aturara, sempre paciente, se afastasse... Estúpido que fora! Agora, sem ter sequer dinheiro para os medicamentos, quanto mais para análises e exames, qual seria o seu futuro? Morreria na valeta, como um indigente...

Tinha imensas saudades dela, gostava mas não a amava, não sabia o que isso era... A culpa era totalmente sua...

Noutra vez lembrou o ex-presidente Obama e o amor e respeito que tinha pela esposa, Michele e concluiu que é a mulher que dá a coesão a um lar. Só assim percebeu que a sua Custódia tinha sido sempre o seu castelo, o seu ponto de equilíbrio... E mais uma vez reprovou as suas brigas, as quezílias que ela lhe aturou até atingir o ponto de saturação...

Sua Custódia? Esse tinha sido o maior erro, ninguém é de ninguém e quando ele falava para ela era com intuito de posse, não a considerava igual a si... Reminiscências da sociedade conservadora onde ainda se permitia viver... Anos e anos de consolidação de uma mentalidade arcaica, primitiva.

Há meses que andava a penar, sentia uma profunda angústia, misturada com arrependimento. E sofria muito... Talvez que afinal essa fosse a retribuição que o destino lhe dera... A Custódia bem lhe dissera « cá se fazem, cá se pagam...» e ele agora estava a pagar um preço bem alto pelos seus erros. Maldita a sua sorte!

Mas nem tinha de que se queixar, ele só lhe dera maus tratos e durante anos ela retribuira-lhe com amor e dedicação... Tudo fazia sentido, agora estava a pagar pelos seus erros.

E os dias passaram, depois semanas. Entretanto o subsídio terminou sem que ele tivesse arranjado trabalho, qualquer que fosse e acabou por ser despejado do quarto, indo morar para um albergue.

Um dia teve um desaguisado com um utente do abrigo e o outro, de maus fígados, deu-lhe duas navalhadas no ventre, enviando-o em estado de coma para a urgência de um hospital, onde acabou por falecer.

Sem família e sem amigos, a Santa Casa da Misericórdia assumiu o funeral, um humilde esquife e um sepultamento quase anónimo num canto do cemitério.

Ferreira Estêvão
Enviado por Ferreira Estêvão em 21/10/2017
Reeditado em 21/10/2017
Código do texto: T6148941
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