O Veterano

Ao longo da vida fui encontrando pessoas, que olham para mim, confiam em mim e acabam por me contarem histórias, que não contam a mais ninguém, a mim porque (penso) me acham o melhor depositário desse tipo de memórias.

Para elas não se perderem, acabo por as escrever para que alguém, algures um dia no futuro as ache interessantes, e as acabe por contar a outras pessoas, garantindo assim uma espécie de imortalidade a quem me conta as histórias.

Esta é uma dessas histórias.

Em tempos, num trabalho que tive, conheci um veterano de guerra, que, depois de alguns meses a tirar-me as medidas, acabou por confiar em mim e me confiar parte das suas memórias, sendo que a mais me impressionou foi esta:

-Sendo de uma tropa especial, acabou por participar em diversas batalhas que a história esqueceu, porque a guerra era maldita e porque essas batalhas foram para além das fronteiras, o que as tornava ilegais aos olhos do mundo e da própria guerra.

Numa dessas batalhas a missão era libertar prisioneiros de guerra, missão de alto risco tanto por ser feita em território inimigo, como por, se fossem capturados, seriam fuzilados no local.

Enquanto me descrevia os pormenores da missão, enquanto viajava várias décadas até ao passado, os olhos do veterano brilhavam, a sua voz adquiriu a frescura da juventude, e por instantes não vi uma pessoa de idade, mas um jovem a contar-me uma história dos seus vinte anos, até a altura em que um nuvem tapou aquele brilho quando me descreveu o momento em que encontraram os prisioneiros e o seu tom de voz passou a ser o de um ancião a rever os seus demónios:

- Miguel, aqueles homens, os meus camaradas, tinham sido tão mal tratados que não vi homens, vi animais, que só voltaram à condição humana quando perceberam que iam para casa.

Nessa altura, o brilho do olhar foi substituído por uma lágrima, que ele, um tipo duro, não ma podia mostrar, limpando-a de imediato e mudando de tema de conversa.

Este relato da operação militar foi particularmente intenso, tanto para ele, como para mim, porque quando vemos uma lágrima no rosto de um homem de pedra, a nossa vida muda um bocadinho para sempre e nos torna ainda mais humanos, porque acabámos por sofrer com o veterano, enquanto desejamos que nunca mais um homem tenha memórias que façam nascer lágrimas daquelas...

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 18/10/2017
Código do texto: T6145839
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