UM CONTO PARA REFLEXÃO
Vamos começar com um convite, uma espécie de desafio. Eu o faço a você: Quero que se imagine o protagonista desta estória, como se ela fosse a história de sua própria vida, pois sobre ela vamos fazer um grande questionamento, e, sabendo disso, confabule comigo...
Imagine, então, que você houvesse sido um operário, não o chamado operário padrão, mas daquele outro tipo, chamado por Vinicius de Morais, pir Operário em Construção.
Imagine-se, portanto, caro leitor, para compreender a dimensão do desafio que lhe é colocado, um jovem operário, com apenas 13 anos, de desde criança já houvesse experimentado toda a sorte de dificuldades que pode enfrentar uma família pobre: privações, despejo, violência e que, naquele momento, ainda extremamente novo, acabara de conseguir seu tão sonhado primeiro emprego, acreditando que melhoraria sua vida. Porém, pelo contrário, o dia-a-dia na fábrica apenas o ensinava, da forma mais dura possível, o significado de ser explorado. Sim, um jovem operário que dava o melhor de si e não era devidamente reconhecido por um sistema que só serve para enriquecer pessoas como seu patrão – não qualquer patrãozinho de uns poucos empregados, mas daqueles que têm exércitos de pessoas trabalhando pra si.
Bom, caro leitor, se você chegou até aqui é porque estou conseguindo convencê-lo a fazer este importante exercício de abstração, fundamental para a experiência que estamos realizando. Então, agora, perceba-se como um operário jovem e cheio de planos para o futuro, que não se conformava com o fato de que seu salário, e os de seus companheiros de profissã, não fosse suficiente para nada além de simples pratos de arroz e feijão, quando muito com um pedacinho de carne ou um ovo; um salário que jamais lhes permitiria cuidar dignamente da saúde e da educação de seus filhos e que sua única diversão seria a cachaça, daquelas de qualidade inferior, vendida em corotes.
Imagine, ainda, que você vivesse bum tempo quando, caso alguém reclamasse desta situação, o capataz de seu patrão, imediatamente, o ameaçasse de demissão, afinal “a porta da casa era a serventia da rua” dizendo que você deveria dar-se por satisfeito, pois em seus tempos de juventude “nos bons tempos do regime militar, se reclamasse das coisas da fábrica, ia tudo pro xadrez”.
E o tempo vai passando, não se sabe se por inexperiência ou medo daqueles “bons tempos”, onde gente poderia ser presa apenas por reclamar, o nosso jovem operário, apesar de muito contrariado, baixou a cabeça para aquela dura realidade, acreditando que ela era a sina de sua vida, como foi a de seu pai e mãe, trabalhadores sofridos como ele.
Mas, depois de um certo tempo de sofrimento em que tentaram torná-lo um operário padrão, o patrão veio com um papo de que ele, nosso jovem operário, não era mais operário. “Pronto, agora não sou nem o que eu pensei que eu era”, apavorou-se nosso jovem. Segundo agora diziam, ele não era mais peão, nada de orelha-seca, não, senhores: Agora, ele era “colaborador”!
O problema é que aquele jovem gostava de pensar. E em seus pensamentos, passou a questionar que, apesar da nova forma nova pela qyal dele falavam, colaborador, o seu salário não colaborava, continuava o mesmo, ou melhor, até pior, pois as coisas estavam tão caras, que eram cada vez mais raras, as vezes em que o pedacinho de carne ou ovo acompanhavam seu arroz e feijão.
Foi nessa época de novos questionamentos que o operário de nosso conto foi aprestando para a CIPA. Não sabendo dos questionamentos do operário, o patrão o escolheu para dela participar na esperança de que ele, jovem e inteligente, ajudasse a abrandar o espírito de seus colegas, que começavam a se rebelar contra os absurdos que ocorriam naquela fábrica, os quais resultavam em inúmeros acidentes de trabalho, dentre os quais aquele que vitimou Maurício, gente boa e amigo de todos, que perdeu um dos olhos quando uma lixadeira arrebentou em sua cara. Ah, se ele ao menos tivesse um óculos de segurança para usar...
Mas, voltando à CIPA, foi nela que o nosso operário conheceu uma turma que estava organizando o sindicato, com apoio de uns caras que sustentavam uma bandeira vermelha. Bandeira que, àquela época, não era estrelada pela corrupção e por um bando de safados que só querem se dar bem na vida.
Tudo bem que é muito difícil de acreditar quando falamos disso hoje em dia, mas pasme, leitor, já houve um tempo no qual o vermelho era a cor da esperança para toda a gente deste país, e que os trotskistas, esses incorrigíveis revolucionários, não eram os únicos que poderíamos chamar, de verdade, de esquerda.
Pronto, o operário em construção, para desespero do patrão, finalmente aprendeu a dizer não, a sonhar e lutar por um mundo novo, onde cada um de nós ganharia segundo a nossa necessidade. E por dizer não, entenda que o nosso operário havia decidido a não aceitar passivamente a exploração e opressão na qual ele e seus colegas estavam submersos. Tinha claro que todos precisamos lutar para que cada um de nós tenha direito não apenas ao pão, mas também à poesia, isto é, à alegria, à felicidade de viver. Tínhamos direito de ser felizes! Ao mesmo tempo, ouvindo sua Mãe, nosso operário não deixava seus livros, seguia firme em seus estudos.
Assim, ainda na linha de produção, começou a organizar os trabalhadores, era um tempo de greves, inclusive gerais, e mesmo na pacata cidade onde morava, eram vistas manifestações das quais, não raro, o nosso operário aparecia à frente. Como não havia ali sindicato, pois não progredira, por razões diversas, aquele que tentaram fundar, foi a vez do patrão dizer o seu não, e nosso operário, a essa altura já um jovem acadêmico de direito, ganhou um pé, imagino que você, leitor, já sabe onde.
Desempregado e sem estrutura, mas sem desistir da luta, nosso amigo operário resolveu dar um passo atrás, na quase clandestinidade, enquanto concluía seus estudos, acabou por vender, de porta em porta, tudo o quanto há. Formado, o operário logo tem seu reencontro com os trabalhadores, primeiro como advogado trabalhista e, não demora, advogado de sindicatos e movimentos sociais como o MST! Sua opção não poderia ser outra, pois o coração que pulsava no seu peito era o mesmo que batia no coração do trabalhador cotidianamente explorado.
Com tanta dedicação, novo operário-advogado (sim operário, pois quem foi do chão da fábrica sempre será um peão) conquistou sucesso profissional. Até carro do ano e casa de bacana o danado alcançou. Não demorou conquistou um grande e verdadeiro amor, com o qual está casado faz mais de vinte anos e hoje tem um filho com quase essa idade.
Mas ele trabalhava feito louco, a exploração dos trabalhadores sempre foi imensa, e ele trabalhava como se ainda estivesse na correria da linha de produção. Sem perceber, nosso personagem viu o seu trabalho, que em seus sonhos, assim como suas antigas greves, deveria servir para ajudar a libertar a classe dos grilhões que lhe impunha o sistema, no frigir dos ovos fomentava ilusões de justiça, uma justiça que, de verdade, passa longe do que pode ser chamado de justo e fortalece o sistema do qual ela é mais uma engrenagem. As regras do sistema, acredite, leitor, não permitem que haja justiça real, pois, se a justiça fosse feita, os homens que pagam para fazer tais regras, ou seja, os grandes patrões, sobre os quais falamos lá no início deste conto, deixariam de existir.
Creio que já falamos bastante do nosso jovem. Se você conseguiu ler este conto até aqui, tá na hora de lhe fazer aquele grande questionamento que falei no início deste texto. Antes, entretanto, peço que esqueça nosso operário. Fique tranquilo, pois ele tá feliz com a vida, me disseram que além de advogado é jardineiro, cozinheiro, ensina direito, escreve poesias e até contos. Vamos, pois, ao questionamento:
O adulto que você é hoje é a pessoa que você enquanto jovem sonhava em se tornar?
Se a reposta for não, acredite, ainda é tempo de tentar.