GESTO DE PUREZA

(Extraído do livro “Tute-Brincadeiras de Papel” do autor Samuel De Leonardo – Tute)

Por anos a fio, ela se dedicou inteiramente àquela empresa, atendia com afinco às exigências do seu diretor, sujeito repugnante, arrogante, cruel e desumano. Constantemente, o executivo impunha tarefas hercúleas como a desafiar a resiliência da pobre mulher. Sem esmorecer, cumpria a jornada diária, extrapolando por vezes o horário do expediente. Profissional responsável que era, não demonstrava seu aborrecimento a ninguém do departamento. Eventualmente, comentava as atrocidades com o companheiro, que carinhosamente lhe pedia paciência.

Enquanto tinha apenas o marido para dedicar a sua atenção, ia engolindo os sapos com maestria. Engravidou e prometera a si mesma que a sua vida tomaria outro rumo após o nascimento da criança. Qual nada, passado o período da licença- maternidade, lá estava ela novamente a cumprir sua missão. Agora, além dos cuidados com o esposo, tinha outra preocupação, o tempo para o filho. Por outro lado, o diretor nada mudara após a maternidade. Muito pelo contrário, passava mais e mais tarefas à subordinada, submetendo-a a constantes assédios.

Sabia da importância do emprego, mas se sentia culpada por ter pouco tempo para se dedicar ao menino. Extenuada, em casa, aproveitava todos os momentos para curtir com intensidade a criança. Vez por outra, pronunciava algumas palavras carinhosas no ouvidinho do nenê, mas sempre terminando com a frase:

- Meu diretor é um canalha!

Nada mudara no decorrer do tempo, nem o tratamento do chefe, nem os desabafos da mãe em relação à situação. Mais e mais a progenitora, sempre que tinha oportunidade, falava à criança:

- Meu filhinho, perdoa a mamãe, viu? Não fico mais tempo com você porque meu diretor é um canalha. Um canalha!

O menino crescendo e a frase repetida continuamente tornara-se uma constante. Tanto é verdade que mesmo antes de falar “mamãe”, ele já balbuciava um som parecido com “canaia”. Os pais achavam tudo aquilo engraçado e entendiam ser apenas uma fala proferida inocentemente.

Sem dar conta da rotina diária, era chegar ao lar tarde da noite para abraçar o filho e, após afáveis carinhos, desabafar:

- Meu filhinho, perdoa a mamãe, viu? Não fico mais tempo com você porque meu diretor é um canalha. Um canalha!

Isto pronunciado era como se eximir da culpa pela ausência materna, proporcionando, de certa forma, um alívio pela árdua responsabilidade de se desdobrar entre a profissional e a mãe.

O menino estava crescido, prestes a completar dois anos, já podia participar de eventos sociais sem dar muito trabalho aos pais. Chegara o final do ano e, pela primeira vez, ele participaria da festa de confraternização da empresa da mamãe. No dia do evento, aquele diretor passou de mesa em mesa cumprimentando cada um dos colaboradores e seus familiares.

Quando chegou à mesa da criança a mãe, com toda a simpatia do mundo, pediu:

- Filhinho, este é o diretor da mamãe, dê um beijinho nele, dê.

O menino, num gesto de fúria, desfere uma bofetada na face do homem e seus gritos ecoam pelo salão:

- Diretor canalha! Diretor canalha! Diretor canalha!

Samuel De Leonardo (Tute)
Enviado por Samuel De Leonardo (Tute) em 14/10/2017
Reeditado em 02/04/2022
Código do texto: T6142615
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