Conto das Terças-feiras - O Gaúcho
Gilberto Carvalho Pereira – Fortaleza (CE), 10 de outubro de 2017
Gaúcho, trinta e poucos anos, boa aparência, pouco viajado, Romildo, pela primeira vez visitava Fortaleza. Seu encantamento pela capital cearense foi despertado após ver algumas fotos da cidade alencarina no Facebook de uma amiga, também gaúcha, que resolvera há quase cinco anos, se mudar para esse local paradisíaco, segundo ela.
Foi uma festa o encontro dos dois. Quando ainda morava na pequena cidade gaúcha de Passo Fundo, Karla era frequentadora assídua do salão de propriedade de Romildo. Só ele tratava daqueles belos cabelos louros ostentados pela também bela Karla.
— Seu cabelo está um lixo, disse ele à amiga que não a via há tempos. Aqui no Ceará não tem profissional à sua altura? Perguntou Romildo indignado.
— Simplesmente é falta de tempo, respondeu Karla. Trabalho muito e, nos meus dias de folga, não perco uma praia. O sol também castiga bastante os meus cabelos. Somente de quinze em quinze dias é que vou ao salão dar um trato neles.
— Capaz, vamos combinar, antes de voltar para o Rio Grande vou recuperar seus cabelos, vou deixá-los deslumbrantes novamente. Agora só quero me divertir, conhecer praias, o Beach Park, os restaurantes, que você diz serem fantásticos, as boates e também assistir a um show de humor.
Deixaram o aeroporto e rumaram para o hotel reservado por Romildo, em plena Avenida Beira-mar, um dos locais mais movimentados de Fortaleza. No caminho, Romildo se declarava encantado com a cidade, pela arquitetura de seus prédios, pela orla, que agora, dado o adiantado da hora, abrigava poucas pessoas e carros. Ele também experimentava o vento fresco que vinha da praia e penetrava pela janela do Corola da amiga, deixada aberta com esse propósito.
— Uma delícia esse vento, que ameniza o calor que faz na cidade, exclama o visitante gaúcho. Parece a brisa do Rio Guaíba, sem aquele cheiro, é claro, sentencia ele.
Ao chegarem à porta do hotel se despediram e combinaram que no outro dia, à noite, eles se encontrariam para assistir a um show de humor. Manhã e tarde ele estaria ocupado conhecendo o Beach Park.
No outro dia, no horário combinado, Karla, o amigo cearense Mateus, que desconhecia a qualificação profissional do gaúcho, e Romildo, rumaram para a casa de show. Foram assistir ao espetáculo “Nós e a plateia”, com vários humoristas cearenses. Durante o show os humoristas brincam com a plateia, composta em sua maioria por turistas. Aos espectadores são perguntadas suas cidades de origem. Para cada cidade há uma piada e a plateia responde com gargalhadas.
Olhando atentamente para um dos humoristas Romildo não ficava quieto. Achava que aquela figura não lhe era estranha. Preocupado em desvendar o mistério, não conseguiu rir. Tentava buscar na memória de onde o conhecia, seus traços lhes eram tão familiares que não seria possível o engano. Mas o rosto que lhe vinha à mente não era de mulher, ele se questionava:
— Como pode uma mulher tão linda estar em minhas recordações de adolescente em formato do rosto de homem, ou melhor, de um jovem adolescente?
A amiga Karla, que se desmanchava em gargalhadas, olhou para o amigo e perguntou:
— Bah, guri, tu não estás gostando? Estás com cara de “abostado” (abobalhado), uma cara de “cusco” (cachorro)!
A barulheira produzida pelos ruidosos turistas impediu que Romildo ouvisse o que Karla estava dizendo. Como ele não reagiu, a amiga, furiosa, “ficou de cara” (aborrecida) e levantou-se. Só aí que o gaúcho percebeu que estava ausente daquele ambiente. Então olhou para a amiga e falou:
— Bah, guria. Eu estava mosqueado (distraído). Minha mente viajava em minha querência (terra natal). Eu, adolescente, firmei conhecimento com um “cupincha guapo” (amigo valente) que me livrava de todas as “peleias” (brigas). Ele era realmente “taita” (destemido). Tivemos um cambicho (apego) muito forte.
— E o que tem a ver tudo isso com este momento? Perguntou a amiga loura.
— Nada, respondeu Romildo, desviando sua atenção para o palco onde a linda humorista se despedia da plateia, sob gritos e aplausos de aprovação.
Romildo ficou inquieto, fazia menção de se levantar, mas não queria aguçar a curiosidade da amiga. Não conteve a ansiedade, levantou-se, pediu desculpa e saiu o mais rápido que pode, vencendo a fila de cadeiras até chegar ao corredor do teatro. Apressadamente “varou” todo o seu percurso e, ao primeiro segurança que encontrou perguntou o nome daquela mulher que acabara de deixar o palco. A resposta foi rápida e seca:
— Não sei, somos proibidos de fornecer informações sobre os artistas.
— Onde é o camarim deles? Perguntou Romildo. O segurança, como resposta, simplesmente virou o rosto e seguiu adiante.
De repente, Romildo percebeu certo alvoroço na saída do teatro, correu para lá e só deu tempo de ver, ao tomar um taxi, o rosto de quem ele tinha na memória, o amigo de adolescência. Ainda correu para ver se alcançava o táxi, mas já era tarde, ele virou à direita e sumiu. Voltando ao teatro, procurou saber o endereço daquele artista que acabara de sair. Novamente a resposta foi igual a anterior:
— Não sabemos, pois ele chega e sai sem ser notado. Por ser bastante discreto, não mantém contato com ninguém do teatro, nem mesmo sabemos quem é o seu empresário. Boa noite senhor, completou a mulher da bilheteria.
Karla, ao sair encontrou o amigo sentado no meio-fio da calçada, aos prantos. Ela perguntou do que se tratava e ele apenas levantou a mão direita, como se não quisesse conversar. Ela sentou-se ao lado dele e os dois ficaram assim por muito tempo. Com gesto tresloucado o amigo saiu em direção à praia, mergulhou na primeira onda alta, nadou, nadou até não ser mais visto. Era uma madrugada bastante escura, o que impedia aos populares visualizar aquele homem que nadava com roupa e tudo.
Telefonaram para os bombeiros que não demorou a chegar. As buscas começaram imediatamente, a escuridão dificultava os trabalhos. Só depois das dez horas da manhã tiveram notícia do corpo, encontrado há mais de mil metros do local onde ele foi visto pela última vez. Karla não se conformava, tinha sido ela quem o convidara para vir a Fortaleza e também para assistir aquele show de humor.