GIMERTON, SÓ?
Gimerton empurra a porta, acende a luz da sala e, fatigado de um dia de trabalho, retira o celular do bolso o deixando sobre a mesa. Expira o ar dos pulmões e olha para a parede: Al-Jazeera corre ligeiramente e abocanha uma baratinha.
O moreno cabeludo inclina a cabeça.
- Boa noite! O jantar estava bom, hein?
A lagartixa de olhos negros, semelhados às sementes de maracujá, fica estática. Após, corre novamente e para sobre o umbral da porta.
O rapaz joga a camisa sobre a cama, liga o ventilador, abre as janelas de par em par e tropeça em um dos sapatos e o chuta para debaixo da cama. Já no quarto de banho, observa a pia.
Nada acontece.
Banhando-se, sente-se como se escamas pesadas e ásperas originadas de problemas no trabalho escorressem pelo ralo, misturadas à água. O aparelho celular toca. Ensaboado, não se esforça para atendê-lo.
- Touchèe, atende!- Fala baixinho fixando o olhar na pia.
O toque polifônico do tema 007 cessa. Bip bip! Mensagem virtual.
Enxuto, segura o celular e abre o envelope virtual. “Te ligou 8*5#3*2#” – é a mensagem que aparece no visor rachado do telefone (o display não mostrava alguns dígitos em razão das constantes quedas no chão).
Retorna a ligação.
- Já estou saindo! Esperem 10 minutos.
Veste uma bermuda jeans e uma camisa amarela, pinga duas gotas de perfume no dedo e espalha por detrás da orelha.
Olha-se no espelho e diz para seu reflexo:
- Aí cara, tu tá bonito! Vamos lá!
Olha para a pia.
Nada acontece.
Na saída, esquece o ventilador ligado. Al-Jazeera está na parede da cozinha acima do fogão.
- Ei, pirrototinha, até daqui a pouco! Divirta-se com os insetos.
Tranca a porta e no terceiro degrau da escada espirra duas vezes. No final da escada, abre o portão metálico fazendo curto rangido nas dobradiças, “é um bezerro querendo mamar?” Pensa crispando o cenho.
Segue pela calçada, pisa em um buraco (obra da Prefeitura no sistema de esgoto da cidade) e resmunga meia dúzia de palavras. Adiante, na praça iluminada, os colegas de trabalho o aguardam para lanchar.
Cumprimentos e sorrisos...
O rapaz se senta ao lado da garota mais simpática do trabalho. Ela conversa empolgada sobre as novas perspectivas da neurociência: BrainNet; E-Leg’s, Interface cérebro máquinas, as chamadas ICM’s, projeto “Walking Again”. Maquinalmente, ele repousa o braço sobre a barra da cadeira de rodas da moça.
- Clívia, já pediram algo?
- Pedi limonada suíça! E você? O que pedirá além do nº 37 do cardápio?
Os três colegas da mesa riem. Sabem o que está relacionado a esse número.
- Eu adoro batatas fritas! Mas pedirei algo diferente para sair da rotina.
- Garçom! Traga-me o nº 41, por favor!
- Hehehe...Para variar, né? Diz Gabriel colocando uma perna sobre a outra.
Conversam, riem e comentam as tolices ditas pelo chefe na reunião da tarde. Acusam a copeira de colocar muito açúcar no café, estarrecem-se ao lembrar da mania da atendente novata: comer cabeças de fósforos. E, reclamam que está na hora de pleitearem aumento salarial. Terminada a porção de macaxeira fritas, Gimerton consome um sanduíche duplo de carne com suco de uvas.
Conta paga.
Levantam-se.
Clívia guia as rodas de sua cadeira.
Despedem-se com toques de afago.
- Até amanhã!
Todos se direcionam às suas moradas. Alguns, ao hotel em que estão hospedados durante a semana. As moças seguem para uma casa alugada. Gimerton, retorna ao apartamento pago todo dia 23 ao Sr. Rosevaldo. Morando sozinho, tem apenas Al-Jazeera à noite, Touchèe pela manhã, o espelho do banheiro e o bonsai em cima da geladeira amassada. Essas são as companhias em sua morada.
Sua família reside em Fortaleza. Ele, por ocasião do novo emprego, veio trabalhar em uma cidade a 200 km da capital onde não tem parentes.
Nota o ventilador ligado.
– Ai, ai, ai, de novo!
Acaricia o bonsai.
Sua vista não encontra a lagartixa na sala. Rápida olhada para a pia.
Nada acontece.
Apaga a luz. O ambiente fica iluminado pelas luzes da praça, as quais adentram pelas janelas abertas e emolduradas por grades. Na penumbra, anda pelos cômodos sem necessidade de tatear objetos.
Em posse de uma caixa de fósforos, aproxima-se da estante na sala. Acende uma vela no castiçal de vidro sobre um anjinho genuflexo de mãos unidas à altura do tórax.
Deita-se, persigna-se e adormece.
Súbito, acorda-se assustado como se alguém o chacoalhasse freneticamente. Após cinco segundos, é surpreendido pelo som do caco de vidro tilintando na sala. Levanta-se e nota a vela diminuída e começando a escorrer o líquido quente do castiçal quebrado para o móvel de madeira.
Apaga a chama: “Foi o meu anjo da guarda quem me avisou e salvou minha vida”. Retorna ao sono na rede.
No início do alvorecer, o silêncio é rompido por um coaxar que parte do banheiro. O oco da pia serve como caixa de ressonância para Touchée entoar seu cântico intermitente.
Gimerton desperta.
O sorriso de satisfação brilha em sua face, pois ele adora o coaxar da rã; é música para seus ouvidos. Hóspede recatada em seu quarto úmido no buraco da pia, sai durante as manhãs. Às vezes, o toque frio do anfíbio em sua pele lhe causa arrepio, mas não o incomoda. A pequenina parece gostar da sua presença.
Manhã de sexta-feira.
O jovem servidor público empreende a jornada ao trabalho. Caminha pensativo: “Família”. Às 14h, estará dentro do ônibus em direção à capital. Seus pais e irmã o aguardam em casa. Uma interrogação risca seu pensamento: Por que não levar a lagartixa, a rã e a plantinha para conhecer a minha família como gratidão por nossa amizade?
Uma semana depois...
POSFÁCIO
Touchée – afetado ou tocado, em francês.
Al-Jazeera – a ilha ou a penísula, em árabe.
Bonsai – árvore em bandeja, em japonês.