Hilário

O frio do mármore era a cama fúnebre das mãos. O coração, feito um tatuzinho escondia-se, ansiava somente pelo cheiro de terra fresca. Um cheiro aflitivo e desconhecido, e um pó cinza espalhavam-se pelo ar, sem um vento ansiolítico revigorante para dissipar. Pensar, pensar, pensar. Alberto Caeiro considerava o excesso de abstração como doença dos olhos. Pessoa refletira que o vermelho ser, o coração, se pensasse, pararia. Mas o que fazer quando é a alma que quer navegar? Quem pode pará-la?

Um mosquito baumaniano picou-me, e fez selfie na piscina da minha vida. Liquidez para quem sabe nadar. Pra quem não sabe é preciso muito fôlego, pois quem boia por muito tempo, uma hora cansa. Somos carregados de tantas filosofias e dizeres desde o início da vida, e chega uma hora que o professor tempo aplica provas, para exercitarmos os manuais sociológicos da vida, sejam bíblicos, filosóficos ou familiares.

Uma hora ou outra a pedra no caminho surge. Pedra caneta. Deus e os psicólogos tecem conselhos, e mudos, em determinado tempo, anseiam ver os resultados. Voltando ao assunto do frio mármore, o dia não era bom.Amente apresentava um turbilhão de adversidades. Coisas do hoje e de outrora. As árvores lá fora olhavam pra mim, tristes e conformadas no pátio da escola. O vento cochilava, estava nublado, e as nuvens tapavam o sol.

Mas vida é trabalho, sempre concluí. Enquanto a inconformidade não passara, sorri para os clientes na entrega dos documentos. Subitamente apareceu-me um senhor na janela, cantando:

__Meu pintinho amarelinho, cabe aqui na minha mão, na minha mão...na minha mão.

Olhei-o perplexa, julgando-o louco. Mas logo percebi meu equívoco, ele dirigia um caminhão.

__Ele bate as asas, ele faz Piu-Piu, mas tem muito medo é do gavião.

Um sorriso pintou meus lábios, tirando o amarelão.

__Faz um tempinho essa música, rs. Lembro-me da minha infância, do Sr. Liberato.

__Faz um tempinho mesmo.

Quando cantava em minha frente, notei que o Senhorzinho tinha apenas um toquinho do dedo, extinto indicador direito. “Cabe aqui na minha mão, na minha mão”. Cantando ele batia aquele “toco” de dedo na palma da mão esquerda, fazendo a coreografia da canção. Nunca pensara eu em vivencia algo assim, hilário. O assunto esticou-se como chiclete, e descobrimos que tínhamos uma fé em comum. Os documentos ficaram prontos, e ao anotar a placa do veículo, descobri que o nome daquele senhor baixinho, de olhos azul anis era Hilário.

__Lá na igreja, se você procurar por Hilário, ninguém saberá quem é. Pergunte pelo Larim.

A tarde ficara colorida segundos rumos da prosa. Entreguei os documentos a Larim e estava difícil despedir-me.

__Há alguns anos deixei de tomar refrigerante, depois que li uma palavra. Minha saúde melhorou bastante, e hoje, não sinto falta.

__Qual foi a palavra lida, Senhor Hilário, conte-me agora.

__Isso não importa. Não me lembro bem. Mas a que Deus me envia, diretamente para você, está no Novo Testamento, livro de Lucas, capítulotreze, do verso dez ao treze.

Anotei livro e capítulo apressadamente num papelzinho, e coloquei no porta-trecos.

__Eu costumo escrever,Sr.Hilário. Vou deixar impresso um texto meu, se o Sr.quiser passe aqui semana que vem, terça feira, para pegá-lo.

__Passarei sim. E despedimo-nos.

O passar dos dias findaram a semana, e tive melhoras no espírito. Uma disposição surgiu no trabalho e com os afazeres do lar. Na terça feira, comocombinado, Sr.Hilário descera de um caminhão apressadamente, para buscar o texto. Fiquei muito feliz com a surpresa, pois ele lembrara. Orgulhosamente assinei o texto, coloquei o meu telefone, e votos de muitas felicidades para ele e para a esposa.

Somente na semana a seguir, digitei Lucas 13 e comecei a ler a palavra. Jesus falava das peripécias de Herodes, e eis que surgira uma mulher que há 18 anos andava encurvada, com um espírito de enfermidade. O Mestre, impondo-lhe as mãos, curou-a e a despediu. Imediatamente ele foi questionado pelo príncipe da sinagoga, por curar no sábado. Jesus chamando-o hipócrita questionou se os mesmos não alimentavam seus animais aos sábados, e o que seria isso, comparadoà libertação de uma filha de Abraão, há dezoito anos presa por Satanás. As lições seguiram enquanto a mulher glorificava a Deus.

Quem está encurvado, tem somente a opção de olhar para baixo, assim como uma tartaruga. Terminando a leitura, fui ao estacionamento e contemplei um céu tão bonito. As árvores no pátio da escola sorriram-me, envaidecidas pela luz gloriosa em suas folhas. Um vento agitava suas cabeleiras, dentro de um fresco ziguezaguear. Creio que Jesus era aquela melancolia alegre daquele vento sul. Respirei fundo. Coisa do diabo ou covardia minha, nada melhor que sentir-me daquela forma.

Os dias seguiram e minha postura mudou. Longe dos planos estava encurvar-se. Com boa saúde, comecei a preocupar-me com as coisas que eu podia resolver, e entregar o restante da mala para o tempo. Era necessário confiança em mim mesma e em Deus. Cecília Meireles aprendera com as primaveras, a sempre brotar após as podas da vida. Não temo mais as tesouras.

Poeta de Borralho
Enviado por Poeta de Borralho em 04/10/2017
Reeditado em 04/10/2017
Código do texto: T6133154
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2017. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.