Sem sangue, por favor!

“O crime vai, o crime vem. A quebrada tá normal e eu tô também”. Racionais Mc’s

Haviam rodado boa parte da noite. Tinham um mapa: Rabiscos em uma folha, nome da cidade, nome do bairro; um rosto impresso em papel sulfite. Chegaram à meia noite, ficaram escondidos em uma plantação de mandioca, nos arredores, alimentando pernilongos. Às duas da manhã entraram no barraco, sorrateiros, estrangularam o cara e o carregaram para a picape.

-Por que nóis tem que levar esse daí?

-Por que são ordens.

-O qui vão fazê cum ele?

-Vão queimar ele.

Foram para a ponte na saída da cidade. Esperariam o comércio abrir, pois a fome é mais forte que a morte. Barrigas roncavam até ao ponto de doer. As notas de cinquenta reais rugiam no bolso. O voo rasante de algumas moscas prenunciava primeiro desconforto, depois podridão. Os homens sonhavam com corpos vivos, fumaças, goiabadas e pernis.

-Merda de cigarro, escroto, Paulin!

-Fuma essa porra, Cráudio! É o que tem pra hoje!

O homem dirigia devagar. O carro vencia, pouco a pouco, a rua esburacada da pequena cidade perdida no mapa. De vez em quando olhava pelo espelho. O corpo, embrulhado no cobertor, batia levemente no assoalho da caminhonete toda vez que passavam por um buraco. No fim da rua, um bar empoeirado. Algumas cédulas no balcão e o magro retorna com uma sacola plástica.

-Tá olhando o quê?

-Para de encarar essas pessoas, Cráudio, senão vai dar bandeira demais!

Passavam invisíveis. Os poucos trabalhadores da manhã viam apenas o carro. Os mais espertos observavam ainda a placa. Por isso, pensava o motorista, havia instalado aquela potente caixa de som na carroceria. Bom, já que não queriam vê-lo, teriam ao menos que ouvi-lo. E assim vagava no Paraná, mas aqui não. Aqui é Mato grosso e é bom nem ser visto, nem lembrado.

-Então, qué dizê qui vai sobrá duzentão pra cada, é?

-Cheganu lá eu desconto o combustível, o cigarro e a água qui tu bebeu e ti dou tua parte.

Rápido descanso: dez minutos para engolir os bolinhos de queijo com Pepsi-cola. O sol reinava no cerrado. O suor escorria da testa do homem magro. Quando ele terminou de urinar fez um sinal para o comparsa que subiu na carroceria para cobrir adequadamente o defunto. O magro pôs-se a tamborilar na lataria enferrujada. O baixinho virou o rosto para o lado do nascente. Ansiava pela cama velha e suja quando recebeu uma palmada.

-Ei, princesa! Acorda!

-Porra, num tô dormindo! Tô só mijando!

-Num mija no morto, Cráudio!!

-Aonde então, Paulin?

-Na puta que te pariu!

Um vento morno e fétido adensava os arbustos. Pequenos grilos e cigarras quebravam o silêncio daquele descampado. No pasto, encorpados urubus promoviam uma dança da morte ao redor de um cavalo moribundo. A paisagem conclamava pragas e lamentos.

-Para de mi xingar, si não...

-Si não o quê? O que você vai fazê?

-Eu não ti impresto mais a minha camisa do Bóbi Márli!

-Si foda, vou comprar uma do Bob só pra mim!

Não disse mais, entretanto pensou que já estava na hora de terminar relações com Cláudio. Ele era um comparsa burro que podia colocar tudo a perder. A mina dele era um pouco menos burra e assim que chegasse ao Paraná, se desvencilharia do outro e inventaria uma desculpa para ela, para depois consolá-la. “Ah, como ia ser bom”, pensou ele. “Esse animal morto, ela e eu na Ilha do Mel”.

-Cráudio, cê já levou a Sol na praia?

-Já não, mais ela num sabi nadar...

As nuvens no horizonte prenunciavam tempestade. Talvez chovesse de madrugada. Na pior das hipóteses choveria ao cair da noite. A picape a diesel andava pouco, devido a sua falta de manutenção. Ia a sessenta quilômetros por hora. Os buracos no asfalto, porém, quando não irritava o motorista o tornava sonolento. Cochilava pesadelos e sonhava solidões.

-Porra, óia o buraco Paulin!

-Onde??

-Óia o caminhão!!

-Cacete, vamo morrê, caraio!!

Com a força do impacto a picape incendiou e foi arrastada por dez metros. Os dois saíram correndo em chamas. Pararam em uma cerca de arame farpado. Um ficou enroscado enquanto o outro se soltou e corria, largando pedaços de carne carbonizada pelo capinzal. Horas mais tarde foi encontrado morto no bebedouro das vacas. Na carroceria da picape um esqueleto em chamas tinha um sorriso frugal. O motorista do caminhão, ileso, tirava fotos e enviava para sua mulher:

-Meu bem, meu bem, visualiza aí! Homem em chamas!

-Amor, isso lá são horas pra filme de terror?

Em Colorado Paraná Brasil Bob Marley também sorria na estampa. Estava dependurado em um velho cabide no surrado guarda-roupa. O seu grande sorriso pacífico ostentava uma paz fenomenal.

make
Enviado por make em 01/10/2017
Reeditado em 27/11/2019
Código do texto: T6130064
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