A mulher da Penha
Acabou finalmente. E mais uma vez ela sentiu o asco lhe enrugar a face e a contrair o estômago. Quando aquela porra pegajosa escorreu de sua genitália ela sentiu o vai e vem do vomito brincar com suas entranhas, mas certamente apanharia até perder a consciência se assim o fizesse.
Respirou fundo, virou para o lado e engoliu o choro e a revolta. Há muito desconhecia o prazer do ato sexual, se é que algum dia conheceu. No começo ele não era assim como um animal, era doce, meigo, gentil. Seu pai sempre dizia que havia algo errado com ele, algo que não cheirava bem, mas a cegueira da paixão havia se instalado em seus sentidos e ela ignorou as advertências do pai. Agora estava ali, se perguntando se havia alguma mágica que a fizesse voltar no tempo.
Ele foi para o chuveiro assobiando e ela juntou os caquinhos de sua pouca dignidade e foi terminar o jantar que não pôde terminar, pois ele chegara mais cedo exigindo seus serviços na cama. Levantou-se e foi recolhendo as roupas que ele rasgara e jogara no chão, os móveis que ele derrubou porque mais uma vez ela tentou negar, olhou-se no espelho trincado e até que ficou feliz, pois ele não acertara seus olhos dessa vez.
Ela queria ter podido se lavar também, mas não tivera tal permissão, as ordens eram terminar o jantar porque o porco precisava de lavagem. “Porco inútil! Um dia te enveneno”, mas ela não faria isso, e sabia que não, apenas gostava de praguejar pra ver se a raiva abrandava.
Voltou pro fogão, a roupa limpa que acabou de vestir não disfarçava o cheiro fétido do sêmen daquele grotesco ser. Enojada ela cuspiu no arroz, urinou um pouco no feijão e na carne aproveitou o resto de porra, que ainda derramava na sua calcinha, e temperou-a. Ela sorriu, mexeu o feijão e gargalhou, riu com vontade e se divertiu.
O chuveiro foi desligado e ele saiu ainda de toalha, esbravejou:
__ Você não janta hoje vadia. Vai tomar seu banho porque daqui a pouco quero brincar de Sofia de novo.
Sim. Hoje ela era Sofia, ontem havia sido Carmem, era assim, e ela odiava cada uma dessas mulheres que ele a nomeava, geralmente eram as que o ignoravam, mulheres do trabalho, ou mesmo do clube que apenas ele frequentava, ou mesmo da rua. Ela já havia tido tantos nomes que às vezes até se esquecia do seu. “Qual é mesmo o meu nome? Quem eu sou?”
No banho, o ritual era sempre o mesmo, esfregar até sangrar, até sentir que cada molécula de pele daquele escroto sumisse da sua. Depois, ela se olhava no espelho, e recordava que havia sonhado uma vida diferente, queria ter terminado a faculdade, ter seguido em sua profissão, ter uma vida social ativa, ter se tornado mãe, mas nenhum bebê resistiu em seu ventre. Talvez fosse melhor assim. Respirou fundo e tentou se lembrar de quem era, mas era sempre doloroso demais se lembrar de quem havia sido, pois isso sempre a remetia ao presente e para quem era agora, naquele momento. “Uma covarde! O entregue a polícia sua idiota! Vá para a casa dos seus pais!” Esse pensamento fazia sua corrente sanguínea fervilhar e ela sentia o estranho efeito de se encorajar, se amedrontar e se envergonhar. “Que pais?” Ela chorava e ria de desespero. “Ele simplesmente te levou pra outro canto do país e nunca mais deixou você falar com seus pais”. Quando eles ligavam a ligação era sempre supervisionada por ele e com minutos contados.
Depois de um tempo parecia que até os pais haviam desistido dela.
Trocou-se, penteou os ralos cabelos curtos e negros. “Você tinha longos cabelos sedosos, se lembra? Chegavam a passar a altura da cintura” Pensava pra si mesma.
Quando voltou pra arrumar a cozinha e lavar a louça sorriu ao ver que ele havia devorado a comida.
__ Estava bom, meu marido? – perguntou sem na realidade ter interesse.
__ Passável, a carne tava com um gosto estranho, o feijão também, veja lá o que põe na minha comida sua desgraçada, se eu morrer por veneno você vai pra cadeia.
Por um momento, paredes de concreto e uma jaula não pareciam tão sufocantes quanto aquele apartamento claustrofóbico.
__ Por que eu faria isso caro marido? Tenho tudo que preciso bem aqui, você me dá de tudo e eu não tenho o que reclamar, me desculpe se agora a pouco eu resisti em te satisfazer, foi apenas o cansaço. – ela já respondia isso tão automático que nem ele reparava mais no cinismo que ela cuspia em cada palavra.
__ Bom mesmo que reconhece isso. Agora pode ir comer um pouco e traga vinho pra nós dois Sofia! – ele sorriu ao enfatizar o nome e ela entendeu o recado. Entendeu aqueles olhos trôpegos parecendo embriagados de sádicas intenções.
Ela foi à cozinha, abriu a geladeira e fez um sanduíche. Bebeu um bom tanto de vinho antes de encher a taça, sua vagina ainda latejava de dor e parecia sofrer de antecipada angústia.
Olhou as luzes lá fora pela janela da cozinha... O mundo continuava ignorante sobre ela. Muitas pessoas deviam estar rindo agora, sentados num barzinho com música ao vivo, bebendo cerveja e comendo aperitivos, rindo, conversando, batendo palmas e cantando junto com o artista. Lembrou-se de que foi na ansiedade de ter tudo isso, toda essa liberdade que renegara a rígida religião dos pais, que se casara com o homem que eles não aprovavam que a igreja não aprovara. Chorou. Ninguém viu. Sua lágrima caiu num protesto solitário e silencioso. O mundo lá embaixo continuava indiferente a sua dor. As luzes, os risos, a música... Tudo parecia um sonho nebuloso e frio.
Ela sentia-se como Rapunzel no alto da Torre, mas sua torre era o prédio de cinquenta andares e seu príncipe havia se transformado num Ogro.
Sem perceber estava cantarolando uma música há tempos esquecida “pra voltar pra ontem sem temer o futuro e olhar pra hoje cheios de orgulho, eu voltaria atrás, atrás no tempo”. Cantarolou até perceber que o fazia e então se encarou mais uma vez, agora no reflexo do vidro. “O que eu mudaria hoje se daqui dez anos eu voltasse no tempo?”
E então uma luz... Um pensamento que tomou coragem de florir, uma semente caída em terra fértil que ela nunca regara, mas floriu agora, naquele instante e a flor se abriu majestosa diante dela, como uma luz de quem nunca vira o fim de um túnel. Ela sorriu. Desta vez um sorriso sincero como há tempos não dava, mas ao mesmo tempo um sorriso que brotava um pouco sinistro no canto da boca. Uma luz surgiu, uma luz clara e ofuscante, libertadora. Um sentimento, o pensamento de não temer mais nada. A coragem! E perguntou-se “por que não?”.
Ela terminou de encher a taça, e toda a sua Odisseia recomeçou, mas dessa vez ela estava anestesiada com seus pensamentos de liberdade.
Na manhã seguinte, foi ao mercado sequer se incomodou com os olhares curiosos sobre sua face marcada pelo terror da noite passada, não se incomodou em cobri-las também, estava livre pela primeira vez. Comprou tudo que precisava para a casa, foi à farmácia e pediu seu antidepressivo de costume, a receita exigia apenas uma cartela, mas por cem reais a mais qualquer farmacêutico de índole questionável poderia lhe fornecer mais três. Sentiu-se feliz por seu marido ter ao menos um ponto bom, lhe deixava o dinheiro que ela pedia para comprar o que fosse preciso, desde que lhe apresentasse as notas depois, mas quanto a essa em questão ela não lhe mostraria.
Ela estava feliz, como há muito não sentia. Sentia o dia quente lhe aquecer a alma, via o azul do céu se espalhar a sua volta. Ouvia o riso das pessoas sem invejá-las. Ela olhou para uma criança e sorriu. Pensou o quanto cada aborto poderia agora ser visto como uma dádiva.
Quando chegou em casa limpou tudo, arrumou as gavetas, vestiu uma das raras roupas boas que tinha, encheu uma taça de vinho e bebeu, quando a noite se aproximava a mesa estava posta, muito arrumada e bonita, havia feito uma sopa quente e deliciosa do jeito que ele gostava.
Ela escutou sem pavor, pela primeira vez, o ruído das chaves girando e abrindo a porta, o ser asqueroso entrou olhou para a esposa e sua visível diferença.
__ Que diabos é isso tudo? – apontou para a mesa bem arrumada a luz de velas.
__ Decidi ser mais complacente com você meu querido esposo. Nunca lhe dei o valor que merecia. Quem eu serei hoje?
__ Hoje você não é ninguém, estou muito cansado, fui demitido.
Por um instante, ela ficou eufórica por dentro de uma maneira indescritível, pois o universo conspirava a favor.
__Eu já esperava. _ continuou ele_ Corte nos gastos, mas não se preocupe vadia, já tenho outro emprego em vista.
Às vezes ela se perguntava se ele a chamava de vadia por nem ele mesmo lembrar o nome dela.
__Não me preocupo querido. Sei que você é um homem de bem e logo tudo se ajeita. Venha, tome sua sopa, fiz aquela que você tanto gosta. Quero que saiba que joguei fora todos os temperos de casa, vi que o gosto ruim era por causa deles, acho que estavam vencidos. Sinto muito pelo meu desleixo.
__Até que enfim resolveu prestar pra alguma coisa. Do jeito que estão às coisas podemos até pensar numa brincadeira boa depois do jantar. _ ele sorriu sugestivo.
Um tremor de leve a assombrou por um instante, mas dessa vez ela não se abalou.
Ao fim do quarto prato de sopa ele pediu vinho e ela serviu.
__Estou me sentindo um pouco tonto. Bebi muito vinho? Será?
__ Acho que bebeu o suficiente para ficar assim querido.
__Me ajude aqui vadia, vou pra cama.
Ela levantou-se e o ajudou, rezando pra que tudo estivesse dando certo.
Ele caiu sobre a cama como um fardo pesado, um saco gigantesco de lixo tóxico.
Ela prontamente lhe tirou dos pés os sapatos. Verificou se realmente ele havia caído no sono. Quando estava certa disso, foi até a cozinha, local no qual ele pouco entrava, pois dizia ser ambiente apenas da mulher, retirou as cartelas vazias do balcão e as queimou até virarem cinzas. Depois jogou o que sobrou pela descarga. Havia mais cinco garrafas de bebida na dispensa, ela esvaziou todas.
Friamente, vestiu-se e foi ver televisão.
No dia seguinte, o corpo rijo do esposo estava frio e imóvel. Ela olhou-o atentamente. Não se sabe por quanto tempo ela ficou ali para ter certeza, mas a verdade é que isso não importava, pois agora ela sentia o gosto da liberdade escorrer por sua garganta até virar uma rajada súbita de risos e gargalhadas.
Chamou a polícia.
__Ele bebeu demais ontem seu policial, foi demitido. Acho que ele não aguentou tanto desgosto. __relatou, neste momento, tremeu um pouco, com medo de ser descoberta.
A verdade é que não foi. Ela representou tão bem infinitas mulheres durante tanto tempo que representar tornou-se fácil para ela. Não permitiu autópsia, aceitou o laudo de alcoolismo crônico.
Dois meses depois ela sentou-se no balcão de um barzinho da alta classe da cidade. Pediu uma cerveja e finalmente, respirou sua liberdade.