UNIVERSO (reeditado)

Universo

Ela esteve pensando acerca do Universo. Sim esse mesmo. O Universo, grande, incontrolável, mutável, silencioso, terrivelmente sarcástico e aleatório. O Universo é a suprema piada de Deus. A primeira e a mais inteligente. Ele nos fez, nos criou indivisíveis, únicos e imperfeitos, suscitou inveja nos anjos e mesmo sem saber disso o ser humano tomou para si a ideia de ser a última bolacha do pacote. Sim o Universo é terrivelmente aleatório, sua maior e mais sensacional característica. Ela cresceu ouvindo os mais velhos dizerem que se fosse boa, gentil, honesta, leal e verdadeira o Universo, aquele mesmo, a recompensaria concedendo-lhe seus mais profundos desejos e vontades. Ela acreditava nisso e procurou crescer assim, tratando de ser em todos os momentos de sua vida boa, gentil, honesta, leal e verdadeira e confiando nisso esperou seu quinhão de recompensas. E ela esperou. E ela travou suas batalhas cresceu e esperou. E não esperou em vão, o Universo deu-lhe tudo que havia sido desejado, ela era feliz e grata por tudo: o amor, os filhos a família e seu trabalho. Sua vida era equilibrada e quase perfeita. Olhava suas crianças lindas e tão parecidas com ela com um amor e desvelo que inebriavam qualquer ser. O seu amor, se perfeito não fosse, ao menos era companheiro, amável, preocupado com ela e com as crianças e nada deixava faltar. Nem ela. Jamais esperou por ele para encher de mimos e coisas e comida a casa e os filhos. Ela era independente e sempre gostou de ser. Tudo era quase perfeito, mas ela sentia que havia alguma ponta solta em sua história. Não por ingratidão, mas sua vida, fora seus filhos, era morna e lenta. Seu trabalho não a satisfazia como deveria ser, e ele a cansava apesar de gostar dele. Pelas crianças havia escolhido trabalhar em algo calmo e que não exigisse muito e de seu tempo. O universo gostava dela e havia lhe concedido exatamente o que queria. Mas era tudo morno, e por vezes sentia falta do calor, da vibração e da loucura do inesperado. Nesse momento sentiu-se idiota. Dentre milhões de mulheres ,ela era sortudamente privilegiada e estava ali, olhando o Universo e achando sua vida morna. Outra coisa que o Universo a havia ensinado era ter fé. A fé é a mais absoluta miragem inventada pelos bons. Servia de desculpa para o comportamento de pasmaceira que geralmente cerca os fiéis depositários da fé. Sim, realmente o Universo era além de sarcástico irônico. Ela nunca imaginou que teria uma conta devedora tão grande, não ter sido uma excelente filha, pessoa, esposa e mãe, mas quem sabe, por ter esperado recompensas. “Dai com a direita de modo que a esquerda não saiba”. A frase era muito instrutiva. À esquerda sempre fora diferente, sempre assimétrica e desigual à direita. Poucos humanos tem a dádiva de nascer simétricos, e ela era. Com certeza ela era um ser humano simetricamente construído. Isso lhe conferia uma beleza incomum, dessas que nos torna fiadores de formas suaves e iguais. Não que fosse perfeita, mas sua simetria lhe conferia uma beleza séria, emoldurada por seu caráter frágil e doce. Sua vida era leve , e a esquerda descobrindo isso, quem sabe, resolvera colocar seus predicados em cheque. E lá estava ele, o Universo, cobrando suas bondades para com ela. Deveria tê-la esquecido, engavetado, e a apagado de seu caderninho que contas. Ela estava sendo agora sorteada pela morte e ignorância do destino. Não havia tempo para sofrer ou se fazer de vítima. Voltou novamente a olhar o Universo no fundo do céu escuro e seus olhos treinados de cientista divisaram a Via Láctea. Ela estaria eternamente lá. A via leitosa e com seus incontáveis sistemas solares e o silêncio absurdo. Seus olhos marejaram e duas lagrimas caíram em seu peito, teimosas e decididas. Ela não tinha tempo para se lastimar ou reclamar, pois havia vivido bem e aproveitado tudo que o Universo lhe concedera. Sua dor maior era não poder acompanhar por mais tempo a vida de seus pequenos milagres, um dia seus filhos haveriam de entender. Voltou os olhos para suas anotações no velho diário. Sem pressa, ela queria apenas escrever como seria os encaminhamentos de suas últimas horas nesse mundo. Sim, ela se perguntava ao Universo por que ela e por que depois de tanto conceder seus desejos e esperanças tirar-lhe tudo assim de forma tão cabal e dolorida. Logo logo, tudo acabaria bem, e ela estaria a salvo e esse seria seu último pedido ao sarcástico e irônico Universo.

Lady Malibe

24.09.2017